Recentemente, Maria de Fátima Bonifácio mencionou a opinião de Vaclav Havel de que “a nossa sujeição aos ‘valores’ de uma civilização puramente técnica faz de nós seres alienados, carentes de qualquer coisa que não sabemos nomear”. Por outro lado, a historiadora apontou como “calcanhar da democracia” o facto de este regime “não [poder] fornecer uma razão ou um sentido para a
vida de cada um”. Dessas referências, poderá derivar-se um tal relacionamento entre aquela forma civilizacional e a democracia que este regime político se conformasse com o efeito existencial - alienação humana - da dita civilização puramente técnica.
Essa conformação, todavia, não será necessária.

Ora, foi precisamente nessa sociedade
tecnológica, capitalista e liberal, e mediante ações políticas como algumas de
que esse personagem teria inadvertidamente participado, que nessa época se
estava conseguindo limitar a referida redução alienante (com o horário máximo
de trabalho, o salário mínimo, etc.).
O percurso teórico de Karl Jaspers dá melhor conta dessa relação entre
tecnologia, alienação e democracia. Cinco anos antes do filme de Chaplin, este
filósofo e psiquiatra tinha chamado “o Aparato” àquela organização do trabalho,
e de toda a sociedade, em ordem à produção em massa. A qual alienaria as
pessoas, quer por estas se constituírem como meras peças de uma grande máquina,
quer por restarem desligadas de produtos em série sem caraterísticas
singulares.
Esse processo alimentar-se-ia a si próprio: a tecnologia permite a vida a
mais pessoas, este aumento requer maior produção económica, a qual requer mais
tecnologia e organização, que permitem um novo aumento demográfico… Jaspers chamou
a este poder descontrolado da tecnologia, e o seu controlo sobre o homem, um
“demonismo”.
Já depois da II Guerra Mundial, porém, o filósofo alemão passou a salientar
que a tecnologia não estabelece os fins para que é usada. Ela será neutra em
relação a esses últimos. De forma que serão sempre as pessoas e as sociedades
que invocam ou que soltam o demónio tecnológico.
Nesta coluna teremos ocasião de reconhecer que essa neutralidade não é completa.
Mas, pela parte que se verifique, devemos considerar a tese de Jaspers de que
só a preservação de direitos individuais e de um espaço de discussão pública
livre, próprios à democracia liberal, poderão controlar o aparato tecnológico.
Será assim o
enfraquecimento da democracia que poderá abrir a porta a uma civilização
técnica que faça de nós seres alienados, e não o processo simétrico. Será, pois, nas próprias virtualidades da democracia liberal que quem
se preocupa com essa civilização deverá assentar a construção e defesa de uma sociedade não alienante, fosse por reduzir o ser humano ao ser maquinal, fosse por reduzir a vida humana à fome, doença e morte precoce.
A civilização tecnológica foi desenvolvida à custa do sacrifício da democracia, basta lembrar as circunstâncias trágicas em que nasceu a Revolução Industrial. Apoiada agora no poder imenso do capitalismo financeiro, tem todo o interesse em que a democracia não seja mais do que decorativa.
ResponderEliminarCom C. Chaplin, o 1º Jaspers poderia talvez admitir essa sua tese. Mas julgo que uma sustentação desta não poderá falhar na crítica à tese, do 2º Jaspers, de que não é a tecnologia que estabelece os fins em ordem aos quais é implementada. A não ser se calhar de agora em diante com a IA com capacidade de aprendizagem, esse sacrifício da democracia - que aliás não vejo que tenha acontecido! - não será assim "tecnológico", mas ainda humano, demasiado humano :)
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