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Karl Jaspers: Os Tempos Modernos e a democracia liberal

Recentemente, Maria de Fátima Bonifácio mencionou a opinião de Vaclav Havel de que “a nossa sujeição aos ‘valores’ de uma civilização puramente técnica faz de nós seres alienados, carentes de qualquer coisa que não sabemos nomear”. Por outro lado, a historiadora apontou como “calcanhar da democracia” o facto de este regime “não [poder] fornecer uma razão ou um sentido para a vida de cada um”. Dessas referências, poderá derivar-se um tal relacionamento entre aquela forma civilizacional e a democracia que este regime político se conformasse com o efeito existencial - alienação humana - da dita civilização puramente técnica.
Essa conformação, todavia, não será necessária.
Desde logo, naquela que será a mais célebre ilustração dessa civilização técnica: o filme Tempos Modernos (1936) de Charles Chaplin, convém acentuar o seu desfecho trágico, e até historicamente erróneo. Trata a história de um operário que se reduz a peça da grande máquina que é não só a fábrica onde trabalha, mas mesmo toda a sociedade capitalista. Da qual ele apenas se salva mediante o amor. Restando todavia o casal à margem de quaisquer condições não só de conforto mas mesmo de alguma garantia de sobrevivência.
Ora, foi precisamente nessa sociedade tecnológica, capitalista e liberal, e mediante ações políticas como algumas de que esse personagem teria inadvertidamente participado, que nessa época se estava conseguindo limitar a referida redução alienante (com o horário máximo de trabalho, o salário mínimo, etc.).
O percurso teórico de Karl Jaspers dá melhor conta dessa relação entre tecnologia, alienação e democracia. Cinco anos antes do filme de Chaplin, este filósofo e psiquiatra tinha chamado “o Aparato” àquela organização do trabalho, e de toda a sociedade, em ordem à produção em massa. A qual alienaria as pessoas, quer por estas se constituírem como meras peças de uma grande máquina, quer por restarem desligadas de produtos em série sem caraterísticas singulares.
Esse processo alimentar-se-ia a si próprio: a tecnologia permite a vida a mais pessoas, este aumento requer maior produção económica, a qual requer mais tecnologia e organização, que permitem um novo aumento demográfico… Jaspers chamou a este poder descontrolado da tecnologia, e o seu controlo sobre o homem, um “demonismo”.
Já depois da II Guerra Mundial, porém, o filósofo alemão passou a salientar que a tecnologia não estabelece os fins para que é usada. Ela será neutra em relação a esses últimos. De forma que serão sempre as pessoas e as sociedades que invocam ou que soltam o demónio tecnológico.
Nesta coluna teremos ocasião de reconhecer que essa neutralidade não é completa. Mas, pela parte que se verifique, devemos considerar a tese de Jaspers de que só a preservação de direitos individuais e de um espaço de discussão pública livre, próprios à democracia liberal, poderão controlar o aparato tecnológico.
Será assim o enfraquecimento da democracia que poderá abrir a porta a uma civilização técnica que faça de nós seres alienados, e não o processo simétrico. Será, pois, nas próprias virtualidades da democracia liberal que quem se preocupa com essa civilização deverá assentar a construção e defesa de uma sociedade não alienante, fosse por reduzir o ser humano ao ser maquinal, fosse por reduzir a vida humana à fome, doença e morte precoce.

versão original in Correio dos Açores, 11/07/2020


Comentários

  1. A civilização tecnológica foi desenvolvida à custa do sacrifício da democracia, basta lembrar as circunstâncias trágicas em que nasceu a Revolução Industrial. Apoiada agora no poder imenso do capitalismo financeiro, tem todo o interesse em que a democracia não seja mais do que decorativa.

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    Respostas
    1. Com C. Chaplin, o 1º Jaspers poderia talvez admitir essa sua tese. Mas julgo que uma sustentação desta não poderá falhar na crítica à tese, do 2º Jaspers, de que não é a tecnologia que estabelece os fins em ordem aos quais é implementada. A não ser se calhar de agora em diante com a IA com capacidade de aprendizagem, esse sacrifício da democracia - que aliás não vejo que tenha acontecido! - não será assim "tecnológico", mas ainda humano, demasiado humano :)

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