Em alguns sítios, está a ensaiar-se a proibição da sua utilização em
contexto escolar (Sciences Po, Paris) ou empresarial (JPMorgan Chase). Talvez
pontualmente isso funcione. Mas, em geral, imagino que as proibições terão
tanto sucesso como o nadador num rio caudaloso que, desprezando a corrente,
invista as suas limitadas forças em braçadas rumo a um determinado ponto da
margem a montante. Além do previsível fracasso, falha-se a preparação dos
atores humanos para o tipo de interação apropriada com atores não-humanos mas inteligentes, na nova rede sociotécnica que se está a impor desde meados da
última década.
A new brain in town
O ChatGPT, se é um portento de erudição, em muitos casos também de compreensão
ou relacionamento e até de aplicação, não o é de criatividade autónoma e
originária. Se não, veja-se: alguém lhe pediu elegias às virtudes de Fidel
Castro e de Donald Trump, mas a resposta omitiu os presos políticos e a carência
económica da população cubana, para depois se furtar por inteiro ao segundo pedido
sob a justificação de que essa elegia poderia ser considerada ofensiva por
algumas pessoas. O preconceito é evidente.
A heteronomia e enviesamento são óbvios em algoritmos programados –
precisamente, mediante as instruções impostas na programação. Mas também ocorrem
em algoritmos com capacidade de aprendizagem, como o ChatGPT. Assim, as
autoridades chinesas proibiram-no, mas por lhe reconhecerem preconceitos culturais
ocidentais, enquanto promovem chatbots inteligentes que sejam favoráveis aos
intuitos desses decisores.
Tentemos então uma sua compreensão elementar. Confesso que me conto entre aqueles que sentem uma vaga mistura de pasmo e reverência
ou susto ao depararmos com palavras como "algoritmo", as quais estão a ganhar
uma ressonância mágica ou exotérica. Todavia, essa palavra designa
tão-simplesmente uma sequência de instruções para, recebendo-se dados à entrada
de qualquer sistema operativo, se produzir um determinado resultado à saída. Em
IA, existem diversos modelos ou famílias de algoritmos, cada qual vocacionado
para certas funções ou tarefas. Ao que percebo, o ChatGPT – e os seus
previsíveis rivais em preparação pela Google, Amazon, a chinesa Alibaba etc. – contam-se
entre os algoritmos que se inspiram em redes neuronais.
Estes algoritmos estruturam-se em sucessivos níveis ou camadas de módulos. Entre
os níveis de entrada e de saída da informação (i.e. de sinais elétricos que, em
computadores, produzem traços nos ecrãs), encontram-se níveis de módulos de tratamento
dessa última, ou seja, de seleção da informação a retransmitir e combinar. Em
cada um destes módulos, se o estímulo elétrico recebido alcançar um determinado
limiar de intensidade e/ou de frequência, é retransmitido para o módulo
seguinte, caso contrário, é ignorado.
Os sistemas de IA aprendem ao lhes serem aplicados "conjuntos de teste":
séries de casos-modelo com os quais os resultados obtidos pelos sistemas são
confrontados, de forma que estes últimos se afinam para que a geração seguinte
dos seus resultados se aproxime dos modelos que lhes são propostos. No caso de
algoritmos por conexão neuronal artificial, o sistema afina-se por retropropagação.
Isto é, ajusta os limiares dos seus módulos intermediários tantas vezes quantas
as necessárias para que esses módulos passem informação cuja combinação se
aproxime tanto quanto possível do conjunto de teste. Assim, quem determina este
último controla ultimamente o que os algoritmos se ajustam a produzir.
Em suma, entre os intervenientes na rede de interações naturais, sociais e
técnicas, surgiu agora um novo elemento capaz de obter alguns dos resultados
até aqui exclusivos do Homo sapiens, mas, nessa classe de resultados, a um
nível muitíssimo superior ao nosso. Dados os enviesamentos desse ator, ao
recebermos os seus produtos deveremos utilizá-los de forma crítica.
Esta crítica, todavia, deverá incidir também no nosso próprio
desenvolvimento pessoal e social, uma vez que a nossa rede sociotécnica se está
a alterar pelo surgimento desse novo ator.
Uma sugestão da Teoria
Ator-Rede
Estou a classificar o ChatGPT como um ator sociotécnico, por referência à
Teoria Ator-Rede (TAR) de Bruno Latour e Michel Callon. No seio desta teoria, "ator" designa tão-somente qualquer elemento que se encontre em relação com
outros – que ocupe um nó da rede – de forma que, dos comportamentos do
primeiro, decorram condicionalismos dos segundos. Normalmente, o
condicionamento é mútuo. Esse conceito não inclui necessariamente a chamada "causalidade do agente": a capacidade deste último causar, livre e intencionalmente,
a sua própria ação. Assim, na rede de uma colheita, são atores tanto o/a
agricultor/a quanto a porção concreta de terra semeada, as sementes, o trator e
o arado etc.
A dispensa dessa última capacidade de causação é altamente discutível. Mas,
dada a aproximação de muitos resultados de sistemas como o ChatGPT aos
resultados humanos, utilizemos aqui esse conceito da TAR para esclarecermos um
pouco a nossa previsível relação com esta nova tecnologia.
Para isso, associemos a esse conceito os de "tradução" e de "interesse" (também da TAR). Os atores relevantes de uma rede têm de se ajustar para concertarem
as respetivas ações no seio dessa última. Para isso, os interesses (não necessariamente conscientes e intencionais) de cada
ator numa rede são traduzidos pelos restantes atores, que assim se apropriam
ou dão um sentido à intervenção daquele primeiro ator, e podem concertar as respetivas
ações com a dele.
Pela minha parte, traduzo o interesse do ChatGPT como, tão-simplesmente, o de reunir na incomensurável
base de dados online aqueles que se possam combinar em conformidade ao pedido recebido. Especialmente relevantes, mas na mesma medida encobertos, são os interesses de quem determine os conjuntos de teste. Enfim, o interesse de muitos estudantes, assim o traduzirão preocupadamente os responsáveis da
Sciences Po etc., será o de se fazerem substituir por aquele algoritmo.
Julgo que esses últimos têm razão nessa preocupação, ainda que talvez não no método. Pois, nesta
terceira década do séc. XXI, cada um de nós parece enfrentar duas alternativas:
uma, é a de desenvolvermos uma literacia sociotécnica que nos permita reconhecer
os cada vez mais, mais variados e mais potentes dispositivos de IA, e
desenvolvermos a capacidade de cooperar criticamente com eles. Cooperar, no
sentido de contarmos com algumas decisões e obras deles. Mais já do que a mera
operacionalização e utilização de ferramentas e utensílios, qual agricultor que
se serve do trator e o controla em terra arável.
A outra alternativa, tudo o parece indicar, é sermos simplesmente postos
fora da rede de atores relevantes. Como os até aqui meros condutores de
tratores, à medida que estes se tornem autónomos. Depois, restará ver o que,
nessa rede, se irá decidindo fazer em relação aos excluídos.
in Etc. e Tal - Jornal, 01/04/2023 (revisto)
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