Martin Heidegger - A raiz da distopia tecnológica

É frequente o lamento de que nos alienamos da nossa condição humana nesta sociedade crescentemente tecnologizada. Motivados pelo recente volume da revista Atlântida (IAC) sobre utopias e distopias, perguntemo-nos: mas não somos nós, seres humanos, quem determina os fins para os quais usamos as tecnologias, e que assim as controlamos?

Martin Heidegger, provavelmente o mais célebre e o mais obscuro pensador sobre a tecnologia e o homem, respondeu que não somos. Aqui fica uma tentativa de em 500 palavras interpretar essa resposta:

Primeiro, assinalemos que a sua obra se foca na condição básica de tudo o que esteja envolvido em quaisquer acontecimentos ou ações, desde este computador até à pessoa que se encontra a utilizá-lo: tudo isso é (existe). A sua primeira condição é a de ser.

Heidegger acentuou que, na tradição encetada na Grécia Antiga, o ser teria sido pensado, digamos, como um processo de adveniência de cada ente à presença dos demais. Em especial, apresentação àqueles entes – os humanos – que reconhecem este processo em tudo o que existe.

Mas, segundo esse pensador, logo no período Clássico Grego o pensamento do ser terá decaído numa compreensão deste último apenas como o resultado daquele processo: a simples condição de se estar posto entre os restantes.

O processo de adveniência terá ficado assim encoberto pela condição que dele resulta. Embora esse encobrimento seja próprio do ser das coisas, pois este é sempre e tão-somente o ser deste jornal, desta pessoa… O que é apresentado são os entes, nunca o ser deles, que apenas os propicia.

Com a Modernidade ocidental, Heidegger reconhece o advento de uma terceira forma de pensar o ser. Num processo simétrico ao original, partir-se-á agora do ente humano a quem todos os entes estão presentes, rumo a estes últimos, que assim se constituem como projeções ou construções desse sujeito. Tudo o que há se constitui como produto subjetivo. E assim como mero recurso ao dispor de uma planificação e de um poder que força e impõe.

Esta é a forma dita “técnica” de pensar o ser.

Na qual se dá um encobrimento de segunda ordem do ser dos entes: o encobrimento de que em cada ente há a descobrir o ser que o traz à presença.

Pelo que cada conjunto de vivências que constitui cada “eu” resta alienado da sua (e de quaisquer outros entes) condição original de estar advindo à presença dos demais. E os processos biográficos, constituídos pelas sequências dessas presenças, desorientam-se ou tornam-se “inautênticos” num cuidado apenas com a produção e o consumo em massa.

Mas a responsabilidade por este “esquecimento do ser” não será humana. Pois a sucessão dessas formas de pensar o ser não constitui uma história de ideias geradas pelo homem. Será antes uma história do ser mesmo: é este que se desdobra ao longo de uma história que é dele, não sobre ele.

A violência e a alienação de que esse filósofo acusa a tecnologia moderna decorrerá, portanto, do destino do próprio ser. A distopia não poderia ser mais radical.

in Correio dos Açores, 21/11/2021


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