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A reindustrialização e a tecnologia como vontade

Enquanto ainda se discute o Orçamento do Estado, sobre o financiamento e orientação de uma eventual reindustrialização e desenvolvimento tecnológico do nosso país, concordaremos que ou serão eminentemente comunitários, ou em boa parte nacionais, ou não se realizarão quaisquer dessas inovações que impliquem investimento. Em última análise, porém, a opção implica uma decisão no âmbito do que um autor já clássico, ainda que numa obra que cumpre agora o número redondo de trinta anos apenas, chamou a “tecnologia como volição”. Uma decisão também salientada, embora de forma mais simplificada, pelos recentes Nobel da economia Daron Acemoglu e Simon Johnson.

No plano da modalidade de financiamento, dada a carta pública do nosso Primeiro-ministro à Presidente da Comissão Europeia, a opção portuguesa parece ser a comunitária. Tanto por um aumento das dotações nacionais para o orçamento da UE, quanto pela mutualização de dívida contraída pela Comissão Europeia. Com a França a ter duplicado neste século a sua dívida pública em percentagem do PIB, caberá aos germânicos, flamengos, escandinavos… optar entre ou empenhar os seus recursos e créditos nessa modalidade, ou quebrar a solidariedade europeia, ou quebrar a própria União Europeia. Esses eleitorados terão a palavra.

Se esta palavra for positiva, a orientação da tecnologia – tanto quanto dependa das instituições comunitárias – por certo será a que eles aceitarem.

Se for negativa, caberá aos portugueses, gregos… escolher entre contar com os respetivos créditos e poupanças pública ou privada, e orientar alguma parte do referido desenvolvimento, ou desistir deste processo.

Admitamos a conveniência desse último. Assim, tanto quem se disponha a esticar a corda nórdica e centro-europeia, e admita que o nosso país delegue a orientação da tecnologia que viveremos, quanto quem assuma de imediato a necessidade de maior poupança nacional a investir naquele desenvolvimento, e se confronte com a orientação desse investimento no que dependa de opções nacionais – ex. redes de transportes, de abastecimento de água… – coloca-se na dimensão volitiva da tecnologia.

Carl Mitcham (n. 1941)
Conforme o clássico esquema proposto por Carl Mitcham (1994), nessa dimensão decide-se a implementação do conhecimento propriamente tecnológico – por exemplo, o saber-fazer que orienta o design específico de um “rato” de computador. Ambos, vontade e conhecimento, concorrem para a manifestação da tecnologia como atividade – desde a produção de computadores e de papel até a utilização de tais instrumentos na escrita e leitura destas palavras. A qual (atividade) visa, enfim, os objetos tecnológicos – como jornais, impressos ou digitais.

Mas, na manifestação da tecnologia como volição, esse historiador das ideias sobre o fenómeno tecnológico, entre outras questões, salienta que se podem desenvolver tecnologias diferentes conforme a determinação da vontade que estas expressam e servem.

Nomeadamente, implementação da tecnologia como: vontade de satisfação de necessidades biológicas (Spengler) – faculta diversas tecnologias, artesanais ou científicas, orientadas pelas condições de vida. Vontade de eficiência (Skolimowski) – implementando o conhecimento não do que é (ciência), mas do que deve continuar ou vir a ser, o que implica juízos de valor coletivos. Vontade de controlo ou de poder (Mumford) – que substitui tecnologias orientadas por diversos interesses vitais e/ou éticos por tecnologias que sirvam este outro grande propósito. Vontade de liberdade dos constrangimentos naturais (Walker) – o que pode legitimar tecnologias desenvolvidas pelo propósito anterior. No que será uma especificação dessas últimas três vontades que caraterizariam a tecnologia Moderna, a vontade de destruir o que é dado, para se reconstruir o mundo conforme a mundivisão dos agentes da produção, ou de alguém que se sirva deles (Ortega).

Mitcham aponta outras abordagens relacionadas a essas. Entre as quais, neste tempo de nano, neuro e biotecnologias que abrem o horizonte ciborgue, vale a pena lembrar a de Jean Brun: a tecnologia como meio da vontade, recorrente na tradição Ocidental, de ultrapassar a cisão entre sujeito (mente, cultura) e objeto (corpo, natureza), numa autocriação, objetivante, do sujeito.

Como aquele historiador e filósofo americano acentua em síntese, o que importa termos presente é que qualquer dessas conceções da tecnologia decorre da conceção que fazemos daquilo que somos e do que devemos ser.

É nesse horizonte que se compreende a presente reivindicação por Acemoglu e Johnson de uma tecnologia que sirva e apenas complemente os seres humanos, ao invés de nos substituir ou até nos usar como seus complementos. Ainda para mais, em pleno novo surto da inteligência artificial, face ao poder que a ínfima minoria que controle esses algoritmos se afigura poder alcançar sobre a enorme maioria da humanidade.

Com as respostas a essas e outras questões correlacionadas, de uma maneira ou de outra, já em curso, parecem acertadas as palavras do nosso PM: “há mais vida para além do Orçamento”. A começar pelo enfrentamento de tais questões, em vista a uma decisão ponderada das respostas civilizacionais que nos estamos pondo a viver.


in (adaptado): Correio do Minho (ed. impressa), 18/11/2024

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