Para orientarmos
esta vinda à leitura desta página digital, precisaremos apenas de algum
conceito como “computador”. Não precisamos de qualquer conceito englobante,
como “tecnologia”. Em cada ação, bastam-nos os conceitos que a orientam com
sucesso.
Isso
não significa que, mesmo em ações com interesses que se não reduzem ao
próprio processo (i.e. mesmo em ações com objetivos práticos a atingir), devamos evitar o uso
desses termos englobantes. Seguindo o exemplo dado, quando nos encontramos numa
ação não como ler alguma página digital ou impressa concreta, mas de
providenciar condições para as ações anteriores – ex. a promoção de literacia
“tecnológica” –, facilitará não só a comunicação com os interlocutores, mas
mesmo o pensamento prático que nos orienta, assumir um significado vago de
“tecnologia” como nome de um conjunto, mal determinado, de coisas que, em cada
ato de comunicação, pareça que nós, esses nossos interlocutores e eventuais
terceiros admitimos reunir ali. Usamos então o termo, dispensando o respetivo
esclarecimento.
É
certo que alguns de nós se podem dedicar a esses esclarecimentos. Mas,
normalmente, isso é inconsequente. Quem então se lhes dedique, estará a
desenvolver um comportamento meramente estético ou lúdico. Afinal, cada qual
aprecia ou diverte-se a seu gosto.
Em
algumas circunstâncias históricas, porém, tais esclarecimentos não serão apenas
estéticos ou lúdicos. Assim se me afigura o caso de “tecnologia”, nesta
passagem do 1.º para o 2.º quartel do século atual. Dada a inovação (introdução
de tecnologias nas práticas sociais) particularmente das NBIC –
nanotecnologias, biotecnologias, tecnologias informáticas incluindo a robótica,
ciências cognitivas incluindo o conhecimento sobre IA – e não só de forma
isolada, mas ainda mais em convergência umas com as outras.
Tomemos
um exemplo em vias de se ter de discutir para cá da ficção científica: um robô
social poderá ser sujeito (não apenas objeto) de direitos? – quem julgue que
tal ideia ainda só terá lugar na mais exotérica das ficções, atente às recentes
notícias sobre “bebés reborn” e o que algumas suas “mamãs” reivindicam para
eles. Ou consideremos os xenobots: máquinas construídas com tecidos vivos, as
quais inclusive, em convergência com a IA, já se reproduzem por algumas
gerações, e com as quais nos associamos quando (por terem menos de 1mm. de
espessura) as fazemos evoluir no nosso sistema circulatório, talvez sejam
candidatas mais fortes a tais direitos do que robôs sociais. Afinal, estão mais
perto do estatuto animal ao qual, há poucas décadas, começámos a aceitar
outorgar alguns direitos.
Essa
questão joga-se na articulação entre a velha questão básica de como se outorgam
quaisquer direitos, e a questão (também básica ainda que esquecida por longos
períodos) da determinação exata do conjunto “tecnologia”.
Designadamente,
entidades como as acima mencionadas, pertencem a esse conjunto? Sabê-lo-emos ao
lhes aplicar o critério da pertinência a este último, mas qual é esse critério?
Ou
deveremos antes constituir diversos conjuntos ditos “tecnológicos”, que apenas
se intersectem, sem talvez sequer qualquer subconjunto comum a todos eles? Por
exemplo, a intersecção entre os conjuntos dos artefactos técnicos e de tudo o
que é objeto de direitos (e.g. de autor), dos quais (artefactos) bastantes mas porventura
não todos também pertençam ao conjunto das coisas passíveis de um conhecimento propriamente
tecnológico, coisas estas talvez nem todas elementos do conjunto “artefactos
técnicos”… Assim, orientaremos as nossas ações consoante o conjunto com que de
cada vez lidemos. Mas será que esta desmultiplicação de critérios de
pertinência facilita a aplicação de cada um deles?
Ou
ainda, talvez o conceito “tecnologia” seja aberto, estendendo-se
progressivamente a novos objetos (como os xenobots). Mas de que dependerá, em
cada evolução histórica, a nova determinação dos limites do conjunto
“tecnologias”?
Ao
arrepio do que talvez seja a normalidade histórica, na nossa circunstância atual
a determinação de “tecnologia” – ou das condições de utilização deste nome – justificar-se-á,
que mais não seja, segundo a racionalidade económica: um investimento de
energia e tempo, na complicação da determinação de um horizonte com que poderíamos
lidar com maior simplicidade, é certo, mas em vista de uma mais produtiva e
mais segura exploração das estranhas pistas, ditas “tecnológicas”, que nos
temos estado a abrir.
in SAPO Tek - Opinião, 25/06/2025
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