Especialmente nos ensinos secundário e superior, cada
uma dessas pessoas estará a orientar-se conforme uma distinção entre
conhecimentos ditos “teóricos” e “práticos” (para simplificar, ignoremos aqui
as competências). Aos teóricos, destinam-se principalmente o ensino secundário
regular, muitos cursos universitários e bastantes “cadeiras” no ensino superior
politécnico. Já a generalidade dos cursos deste último tipo de ensino, partes
importantes de alguns cursos universitários (ex. engenharias ou medicina), e o
ensino técnico profissional destinam-se principalmente aos conhecimentos
práticos.
Em conformidade a essa distinção, para que cada
estudante, professor ou família de apoio melhor cumpra a respetiva orientação para
uns ou outros currículos e tipos de escola, convém se dispor desde o começo
para o tipo de trabalho que o espera.
Numa tentativa de esclarecimento do que isso seja,
tomemos um exemplo: se conhecermos os comprimentos apenas de dois dos três
lados de uma figura, sendo retângulo um dos ângulos, e, nas nossas atividades
práticas, precisarmos de conhecer o comprimento do outro lado, i) recorremos
ao Teorema de Pitágoras, e ii) produzimos ou obtemos a medida do
comprimento que nos interessa. Mas o que justifica este conhecimento?
Além da confirmação das mensurações e do ulterior
cálculo aritmético, temos de provar aquele teorema. Como? – afinal, pretendemos
que ele também é verdadeiro para triângulos que não podemos medir agora, como
os que serão desenhados no futuro. Temos produzido ou construído essa prova na
base de alguns axiomas geométricos, que (provisoriamente) admitimos, pela
aplicação de algumas formas lógicas, cuja validade nos parece também termos de
admitir.
Ora, o que nos orienta passo a passo num percurso,
como o da construção de uma prova, nomeadamente na seleção dos recursos (como os
axiomas e as formas lógicas) apropriados, é o que chamamos “conhecimento
prático”: um conhecimento interessado em alguma produção.
Assim, todo aquele processo de conhecimento de uma
medida é prático. Como seriam práticos os processos de explicação (ou da compreensão)
justificada da crise dinástica portuguesa de 1383-85, da determinação genética
da produção de proteínas etc. “Teoria” é o nome apenas da forma dos resultados
da etapa (i), uma vez abstraídos do processo da sua justificação.
Os cursos e escolas que visam primeiramente a aquisição
desses resultados, podem-se dizer assim “teóricos”.
Posto isso, quem agora se apresta a encetar um
novo ano letivo – especialmente nesses cursos e escolas – encontra-se na
bifurcação de dois ramos. Num destes, terá de cumprir algum passo da
aprendizagem de como produzir e justificar teorias, e do reconhecimento do
sentido destas de forma a esclarecer quais se apropriam a cada tipo de situações.
Note-se que, por razões pedagógicas, essa aprendizagem poderá evoluir da etapa
(ii) para a (i) (a ordem psicológica não é idêntica à ordem
lógica).
No outro ramo, o estudante ou professor desiste por
inteiro de quaisquer trabalhos de justificação e produção teóricas – o que
significa desistir do que, desde o séc. IV a.C., no Ocidente se chama “conhecer”
e não apenas “acreditar” em tais teorias. Para se concentrar de imediato na
memorização e, quando muito, organização das crenças teóricas que têm vindo a
ser facultadas por ingleses, alemães, americanos, hoje também chineses… nas
suas produções de conhecimento.
Quanto ao sentido de uma teoria – especialmente
relevante nos cursos e escolas ditas “práticas” –, não sei se é possível
reconhecê-lo sem ao menos acompanhar a justificação dela. Se é possível, então
pode-se assumir o segundo ramo com uma bifurcação particular: ii.i) aprender os sentidos das crenças teóricas memorizadas
para se orientar na aplicação destas a situações concretas, ou ii.ii) desistir
também desses sentidos. Substituindo então (em (ii.ii)) o reconhecimento
destes pela memorização de longas séries de correspondências (também facultadas
por ingleses…) da forma: para se cumprir o interesse A, uma vez que na
situação dada se verifiquem as evidências (sinais) a, b, c
ou d, aplicar teoria x; se se verificarem antes as evidências e,
f ou g, aplicar teoria y; para o interesse B…
Se não é possível obter o sentido sem a
justificação, então cada estudante ou professor é remetido imediatamente para
essa última memorização.
Nesse enquadramento, apontarei apenas que, em
relação às escolhas individuais na mencionada bifurcação, certamente se pode
ser uma ótima pessoa com meras crenças e memorizações no lugar de conhecimentos.
E a história está cheia de estupores cheios desses últimos. Cada um escolha simplesmente
o ramo cognitivo que lhe pareça lhe ser mais apropriado.
Já em relação às escolhas coletivas –
determinantes do desenho dos currículos, dos tipos de ensino etc. –, a situação
será mais delicada. As comunidades podem evoluir de forma muito satisfatória
ainda que bastantes dos seus membros enveredem por aquele segundo ramo… ou pelo
menos assim foi até à chegada da IA. Do que tenho alguma dúvida é que as
comunidades que se firmem primordialmente nesse segundo ramo criem para si
próprias as condições de vida daquelas outras onde se produzem conhecimentos propriamente
ditos.
in Correio do Minho (ed. impressa), 04/09/2024.
Comentários
Enviar um comentário
Qualquer comentário cortês é bem-vindo, em particular se for crítico ou sugerir desenvolvimentos ao post.