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A escola e os conhecimentos práticos

Passado o verão, centenas de milhar de estudantes e professores, e indiretamente as respetivas famílias, aprestam-se a encetar mais um ano de aquisição/transmissão de conhecimentos e desenvolvimento de competências.

Especialmente nos ensinos secundário e superior, cada uma dessas pessoas estará a orientar-se conforme uma distinção entre conhecimentos ditos “teóricos” e “práticos” (para simplificar, ignoremos aqui as competências). Aos teóricos, destinam-se principalmente o ensino secundário regular, muitos cursos universitários e bastantes “cadeiras” no ensino superior politécnico. Já a generalidade dos cursos deste último tipo de ensino, partes importantes de alguns cursos universitários (ex. engenharias ou medicina), e o ensino técnico profissional destinam-se principalmente aos conhecimentos práticos.

Em conformidade a essa distinção, para que cada estudante, professor ou família de apoio melhor cumpra a respetiva orientação para uns ou outros currículos e tipos de escola, convém se dispor desde o começo para o tipo de trabalho que o espera.

Numa tentativa de esclarecimento do que isso seja, tomemos um exemplo: se conhecermos os comprimentos apenas de dois dos três lados de uma figura, sendo retângulo um dos ângulos, e, nas nossas atividades práticas, precisarmos de conhecer o comprimento do outro lado, i) recorremos ao Teorema de Pitágoras, e ii) produzimos ou obtemos a medida do comprimento que nos interessa. Mas o que justifica este conhecimento?

Além da confirmação das mensurações e do ulterior cálculo aritmético, temos de provar aquele teorema. Como? – afinal, pretendemos que ele também é verdadeiro para triângulos que não podemos medir agora, como os que serão desenhados no futuro. Temos produzido ou construído essa prova na base de alguns axiomas geométricos, que (provisoriamente) admitimos, pela aplicação de algumas formas lógicas, cuja validade nos parece também termos de admitir.

Ora, o que nos orienta passo a passo num percurso, como o da construção de uma prova, nomeadamente na seleção dos recursos (como os axiomas e as formas lógicas) apropriados, é o que chamamos “conhecimento prático”: um conhecimento interessado em alguma produção.

Assim, todo aquele processo de conhecimento de uma medida é prático. Como seriam práticos os processos de explicação (ou da compreensão) justificada da crise dinástica portuguesa de 1383-85, da determinação genética da produção de proteínas etc. “Teoria” é o nome apenas da forma dos resultados da etapa (i), uma vez abstraídos do processo da sua justificação.

Os cursos e escolas que visam primeiramente a aquisição desses resultados, podem-se dizer assim “teóricos”.

Posto isso, quem agora se apresta a encetar um novo ano letivo – especialmente nesses cursos e escolas – encontra-se na bifurcação de dois ramos. Num destes, terá de cumprir algum passo da aprendizagem de como produzir e justificar teorias, e do reconhecimento do sentido destas de forma a esclarecer quais se apropriam a cada tipo de situações. Note-se que, por razões pedagógicas, essa aprendizagem poderá evoluir da etapa (ii) para a (i) (a ordem psicológica não é idêntica à ordem lógica).

No outro ramo, o estudante ou professor desiste por inteiro de quaisquer trabalhos de justificação e produção teóricas – o que significa desistir do que, desde o séc. IV a.C., no Ocidente se chama “conhecer” e não apenas “acreditar” em tais teorias. Para se concentrar de imediato na memorização e, quando muito, organização das crenças teóricas que têm vindo a ser facultadas por ingleses, alemães, americanos, hoje também chineses… nas suas produções de conhecimento.

Quanto ao sentido de uma teoria – especialmente relevante nos cursos e escolas ditas “práticas” –, não sei se é possível reconhecê-lo sem ao menos acompanhar a justificação dela. Se é possível, então pode-se assumir o segundo ramo com uma bifurcação particular: ii.i) aprender os sentidos das crenças teóricas memorizadas para se orientar na aplicação destas a situações concretas, ou ii.ii) desistir também desses sentidos. Substituindo então (em (ii.ii)) o reconhecimento destes pela memorização de longas séries de correspondências (também facultadas por ingleses…) da forma: para se cumprir o interesse A, uma vez que na situação dada se verifiquem as evidências (sinais) a, b, c ou d, aplicar teoria x; se se verificarem antes as evidências e, f ou g, aplicar teoria y; para o interesse B

Se não é possível obter o sentido sem a justificação, então cada estudante ou professor é remetido imediatamente para essa última memorização.

Nesse enquadramento, apontarei apenas que, em relação às escolhas individuais na mencionada bifurcação, certamente se pode ser uma ótima pessoa com meras crenças e memorizações no lugar de conhecimentos. E a história está cheia de estupores cheios desses últimos. Cada um escolha simplesmente o ramo cognitivo que lhe pareça lhe ser mais apropriado.

Já em relação às escolhas coletivas – determinantes do desenho dos currículos, dos tipos de ensino etc. –, a situação será mais delicada. As comunidades podem evoluir de forma muito satisfatória ainda que bastantes dos seus membros enveredem por aquele segundo ramo… ou pelo menos assim foi até à chegada da IA. Do que tenho alguma dúvida é que as comunidades que se firmem primordialmente nesse segundo ramo criem para si próprias as condições de vida daquelas outras onde se produzem conhecimentos propriamente ditos.


in Correio do Minho (ed. impressa), 04/09/2024.

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