A primeira daquelas secções começa com a definição
originária de J. McCarthy, em 1956, da IA como o que quer que faculte a uma
máquina comportamentos que, se implementados por seres humanos, são
classificados como inteligentes. Não sendo necessário que isso se processe do
mesmo modo da inteligência humana.
Os dois parágrafos seguintes (8 e 9) apontam a
especificidade dos atuais algoritmos no desempenho de cada função “inteligente”
– ex. tradução linguística, resposta a questões verbais, classificação de
imagens… E destacam a IA com capacidade de aprendizagem.
A este propósito, lembremos o ensaio com grande impacto
internacional do investigador português Pedro Domingos, já há uma década, sobre
a diversidade lógica dessas famílias de algoritmos. Este autor apelou então ao
desenho de um “Algoritmo Mestre” que, como a inteligência natural mas não como
as atuais inteligências artificiais, consiga reunir as diversas competências
próprias a cada uma dessas outras. A recente Nota do Vaticano releva
precisamente esse projeto de uma IA geral. Assinalando que alguns anteveem que
ela ultrapassará a nossa inteligência natural, pelo que outros alertam para os
seus perigos.
Como, porém, esclarece o parágrafo 10, a
utilização unívoca do termo “inteligência” – i.e. designando as mesmas
faculdades em seres humanos e em algoritmos – implica uma conceção
funcionalista se não dos processos mentais em geral, ao menos dos designados
por aquele nome. E o parágrafo 11 põe o dedo na ferida:
“in the case of AI, the ‘intelligence’ of a system is (…) based on its ability
to produce appropriate responses (…) regardless of how those responses are
generated”.
Sigamos brevemente esta pista apontada na Antiqua et Nova, mas no modo como tem sido trabalhada pelas ciências cognitivas, desde a filosofia da mente às neurociências e à reflexão no seio da IA. O funcionalismo é a corrente de
pensamento sobre os fenómenos mentais que os assume como funções que traduzem
certos inputs observáveis, nomeadamente sensíveis, em outputs também
observáveis, nomeadamente comportamentais. Num exemplo clássico, a dor traduz,
digamos, uma picada de agulha no súbito afastamento da mão.
Esta abordagem aos processos mentais tem duas
vantagens: uma, é que se estriba em fenómenos observáveis, designadamente, os
estímulos sensoriais e os comportamentos ulteriores. A outra é que, ao assumir
os segundos como consequências dos primeiros, salvaguarda a consideração de
processos mentais – em si mesmos inobserváveis além das discutíveis
introspeções (pelo que a psicologia comportamentalista não tinha recursos para
os considerar) – como as então necessárias mediações entre aqueles momentos
iniciais e finais.
Os próprios funcionalistas, porém, cedo
reconheceram um problema: este esquema concetual não parece dar conta das
experiências subjetivas e, muito especialmente, da consciência.
Por exemplo, se a uma picada e a uma queimadura se
seguem semelhantes desvios rápidos do corpo, os sujeitos testemunham porém que
as experiências dolorosas não são qualitativamente idênticas num caso e noutro.
Ora, a mera tradução daqueles inputs nesse mesmo comportamento não permite
conceber uma diferença qualitativa.
E depois vem o que David Chalmers celebremente
designou por “the hard problem”: a consciência. Ou seja, a explicação desde
logo do desdobramento do sujeito humano sobre si próprio, na noção que cada um
de nós tem de si a ter quaisquer experiências e comportamentos. Muitas pessoas
pretendem ainda desenvolver o conceito de “consciência” com a inclusão da
capacidade de ponderar alternativas, decidir entre estas e causar o comportamento
correspondente. Este sentido forte de consciência (com “livre-arbítrio”) é
discutível, mas, pelo menos naquele sentido fraco (“sentimento de si”), parece
impor-se a consideração de uma consciência. Que o esquema funcionalista dificilmente
facultará, gerando apenas uma conceção nossa quais zombies.
Nesta situação, os contributos funcionalistas
parecem constituir-se como necessários mas não suficientes para uma conceção
justificada da mente, e assim da inteligência. Necessários, se se pretende
alguma justificação empírica. Insuficientes, se se incluem as experiências
subjetivas e a consciência entre os fenómenos mentais a explicar.
Essa discussão, com sustentação empírica e lógica,
sobre a necessidade e a suficiência de qualquer proposta de conceção integral
da mente está em curso nas referidas ciências cognitivas. Voltando à Antiqua et Nova, a sua secção III, porém,
evolui antes numa dissertação sobre a distinção concetual, na tradição ocidental, entre intelecto e razão. Avançando também o postulado de
(literalmente: pedido que se aceite) uma imbricação entre as nossas faculdades
mentais, incluindo as emocionais, e a nossa corporeidade.
Sobre a temática da mente, portanto, esta Nota do
Vaticano tem o mérito de a equacionar certeiramente no valor do esquema
funcionalista. Mas, para uma abordagem crítica que enjeite quaisquer bases dogmáticas, interessará
apenas como um lembrete de velhos recursos concetuais – “razão”, “intelecto” e “corpo”
– eventualmente a empregar nesta abordagem.
Por outro lado, se se presumir a doutrina cristã sobre a constituição do ser humano, dispensando a justificação acima referida, a leitura desse texto tem certamente a virtualidade de formalizar ou dar corpo às intuições do leitor (que presuma aquela doutrina) nesta questão maior dos nossos tempos, que é a da emergente relação entre a nossa inteligência natural e as inteligências artificiais que estamos começando a utilizar em larga escala.
in Correio do Minho (ed. impressa), 03/03/2025
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