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Antiqua et Nova: as inteligências humana e artificial

A 28 de janeiro passado, a Igreja Católica publicou a Nota referida no título acima. Da autoria de dois Dicastérios, um dos quais, por sinal, tem como Prefeito o Cardeal português Tolentino Mendonça. O documento é rico e sugestivo a diversos títulos, mas, nestas linhas, abordarei apenas a comparação que tece entre o sentido de “inteligência” em relação a algoritmos artificiais (IA), e o sentido desse termo uma vez reportado ao ser humano. Respetivamente, nas secções II e III da Nota. Para apontar que o documento coloca as questões relevantes, mas que as desenvolve noutra pista que não a de uma justificação epistemologicamente legítima para as teses que se assumam.

A primeira daquelas secções começa com a definição originária de J. McCarthy, em 1956, da IA como o que quer que faculte a uma máquina comportamentos que, se implementados por seres humanos, são classificados como inteligentes. Não sendo necessário que isso se processe do mesmo modo da inteligência humana.

Os dois parágrafos seguintes (8 e 9) apontam a especificidade dos atuais algoritmos no desempenho de cada função “inteligente” – ex. tradução linguística, resposta a questões verbais, classificação de imagens… E destacam a IA com capacidade de aprendizagem.

A este propósito, lembremos o ensaio com grande impacto internacional do investigador português Pedro Domingos, já há uma década, sobre a diversidade lógica dessas famílias de algoritmos. Este autor apelou então ao desenho de um “Algoritmo Mestre” que, como a inteligência natural mas não como as atuais inteligências artificiais, consiga reunir as diversas competências próprias a cada uma dessas outras. A recente Nota do Vaticano releva precisamente esse projeto de uma IA geral. Assinalando que alguns anteveem que ela ultrapassará a nossa inteligência natural, pelo que outros alertam para os seus perigos.

Como, porém, esclarece o parágrafo 10, a utilização unívoca do termo “inteligência” – i.e. designando as mesmas faculdades em seres humanos e em algoritmos – implica uma conceção funcionalista se não dos processos mentais em geral, ao menos dos designados por aquele nome. E o parágrafo 11 põe o dedo na ferida: “in the case of AI, the ‘intelligence’ of a system is (…) based on its ability to produce appropriate responses (…) regardless of how those responses are generated”.

Sigamos brevemente esta pista apontada na Antiqua et Nova, mas no modo como tem sido trabalhada pelas ciências cognitivas, desde a filosofia da mente às neurociências e à reflexão no seio da IA. O funcionalismo é a corrente de pensamento sobre os fenómenos mentais que os assume como funções que traduzem certos inputs observáveis, nomeadamente sensíveis, em outputs também observáveis, nomeadamente comportamentais. Num exemplo clássico, a dor traduz, digamos, uma picada de agulha no súbito afastamento da mão.

Esta abordagem aos processos mentais tem duas vantagens: uma, é que se estriba em fenómenos observáveis, designadamente, os estímulos sensoriais e os comportamentos ulteriores. A outra é que, ao assumir os segundos como consequências dos primeiros, salvaguarda a consideração de processos mentais – em si mesmos inobserváveis além das discutíveis introspeções (pelo que a psicologia comportamentalista não tinha recursos para os considerar) – como as então necessárias mediações entre aqueles momentos iniciais e finais.

Os próprios funcionalistas, porém, cedo reconheceram um problema: este esquema concetual não parece dar conta das experiências subjetivas e, muito especialmente, da consciência.

Por exemplo, se a uma picada e a uma queimadura se seguem semelhantes desvios rápidos do corpo, os sujeitos testemunham porém que as experiências dolorosas não são qualitativamente idênticas num caso e noutro. Ora, a mera tradução daqueles inputs nesse mesmo comportamento não permite conceber uma diferença qualitativa.

E depois vem o que David Chalmers celebremente designou por “the hard problem”: a consciência. Ou seja, a explicação desde logo do desdobramento do sujeito humano sobre si próprio, na noção que cada um de nós tem de si a ter quaisquer experiências e comportamentos. Muitas pessoas pretendem ainda desenvolver o conceito de “consciência” com a inclusão da capacidade de ponderar alternativas, decidir entre estas e causar o comportamento correspondente. Este sentido forte de consciência (com “livre-arbítrio”) é discutível, mas, pelo menos naquele sentido fraco (“sentimento de si”), parece impor-se a consideração de uma consciência. Que o esquema funcionalista dificilmente facultará, gerando apenas uma conceção nossa quais zombies.

Nesta situação, os contributos funcionalistas parecem constituir-se como necessários mas não suficientes para uma conceção justificada da mente, e assim da inteligência. Necessários, se se pretende alguma justificação empírica. Insuficientes, se se incluem as experiências subjetivas e a consciência entre os fenómenos mentais a explicar.

Essa discussão, com sustentação empírica e lógica, sobre a necessidade e a suficiência de qualquer proposta de conceção integral da mente está em curso nas referidas ciências cognitivas. Voltando à Antiqua et Nova, a sua secção III, porém, evolui antes numa dissertação sobre a distinção concetual, na tradição ocidental, entre intelecto e razão. Avançando também o postulado de (literalmente: pedido que se aceite) uma imbricação entre as nossas faculdades mentais, incluindo as emocionais, e a nossa corporeidade.

Sobre a temática da mente, portanto, esta Nota do Vaticano tem o mérito de a equacionar certeiramente no valor do esquema funcionalista. Mas, para uma abordagem crítica que enjeite quaisquer bases dogmáticas, interessará apenas como um lembrete de velhos recursos concetuais – “razão”, “intelecto” e “corpo” – eventualmente a empregar nesta abordagem.

Por outro lado, se se presumir a doutrina cristã sobre a constituição do ser humano, dispensando a justificação acima referida, a leitura desse texto tem certamente a virtualidade de formalizar ou dar corpo às intuições do leitor (que presuma aquela doutrina) nesta questão maior dos nossos tempos, que é a da emergente relação entre a nossa inteligência natural e as inteligências artificiais que estamos começando a utilizar em larga escala.

in Correio do Minho (ed. impressa), 03/03/2025

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