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in: Prior probability, 2017 |
O planisfério anexo é bastante diferente daqueles
a que mais nos habituamos. Pela minha parte, não foi imediato ou intuitivo
localizar ali o Porto, onde este jornal é editado. Ou aquelas que foram as mais periféricas (!) possessões do império português, Timor e Macau, e mais ainda
o Brasil, origem da maior comunidade estrangeira em Portugal.
Todavia, essa representação do mundo habitado não
é nem mais nem menos verdadeira do que os planisférios horizontais com os polos
nos topos; o Atlântico ou a Península Ibérica e a África ocidental no centro; com
os cantos (ex. Gronelândia) ou agigantados ou inclinados para dentro, conforme
os meridianos tenham sido imaginados ou como paralelos (Mercator) ou como
crescentemente curvos (Robinson).
Esta comparação convoca-nos a duas utilizações do
termo "hermenêutica" (i.e. leitura interpretativa): uma, diretamente sobre o
mapa anexo e o mundo hoje em preparação; a outra, sobre afinal quaisquer
artefactos técnicos com que quotidianamente habitamos o mundo.
Hermenêutica de um planisfério para o séc. XXI
O presente mapa é de origem chinesa. Mantém a posição
central desse país que se encontra logo no Kunyu Wanguo Quantu, o primeiro
mapa mundial desenhado na China (1602). Mas, do séc. XVII ao séc. XXI, vai todo
um salto.
Desde logo, a configuração vertical é
apropriada ao visionamento mediante telemóvel. A técnica cartográfica ajusta-se
assim à tecnologia do canal que deverá ser eminentemente utilizado na
transmissão dessa mensagem de representação do mundo.
Mas outras implicações parecem ser também aí
assumidas. Uma, socioeconómica e demográfica, é a relevância das deslocações e
transportes, com crescimento geométrico após a II Revolução Industrial. Outra,
climática, é a previsão do degelamento do polo Norte durante o verão a partir de
meados deste século, o que facultará, durante esses períodos, viagens marítimas
muito mais curtas entre a Ásia, a América e a Europa.
Assim, em detrimento de uma representação mais isomórfica
– i.e. que mantivesse uma forma próxima à de uma perceção natural do objeto
representado – os designers deste mapa, quais pintores cubistas, integraram assim os dois polos no
interior do mesmo plano. E subordinaram qualquer proporcionalidade das áreas das
diversas regiões às posições relativas entre estas, num ajeitamento da
geografia física à humana (com respeito à demografia, economia etc.).
Posto isso, ao centro, encontra-se a zona cujas
relações, em todas as direções, cada vez mais pesam no mundo: o Extremo Oriente
e a Índia.
Daí, para a esquerda do utilizador e intérprete
deste artefacto técnico, estende-se uma península bastante recortada, de
tamanho decrescente mas toda ela relativamente pequena, a Europa. Logo abaixo, com
separação apenas por uns grandes lagos ou pequenos mares estendidos ao comprido,
a Arábia e a grande África.
Para baixo do centro mas próximos deste, o longo
arquipélago indonésio e a Austrália. A seguir, a Antártida gelada e, depois, a
fértil e povoada América do Sul. Separável, pois, das restantes Américas.
Para a direita, o mapa não apresenta nada além de
mar. Cabe ao intérprete compreender que essa também é uma direção até ao
continente americano, então reunido.
E para cima, também perto do centro ainda que
através de terra e mar (por enquanto gelado), a rica América do Norte.
Nas periferias desta representação do mundo, ficam agora zonas como aquela pequenina faixa que, no quadradinho que quase reúne a península europeia e o norte de África no fim do estreito mar que separa estes territórios, está mais afastada do eixo que (entre Barcelona e Gibraltar) precisamente estabelece esta relação terrestre. À atenção de quem habita essa faixazinha.
Quando muito, o país que aí fica também é composto por um
arquipélago, ao longo dos paralelos 36º e 39º N., o qual se encontra na
intersecção entre a rota marítima desde a África ocidental à confluência a
norte dos três continentes politicamente relevantes, e uma rota mais desviada, mas com mar menos alteroso, entre a Europa ocidental e a costa Leste da América
do Norte. A relevância desta posição atlântica, porém, será tamanha que, mesmo
aumentando a imagem, me parece que este mapa nem chega a assinalar esse
arquipélago – embora, nos últimos anos, importantes governantes chineses tenham
visitado o porto de Praia da Vitória, com atenção a equipamentos na base das
Lajes…
Enfim, este é o mundo que, nas suas práticas
(relevância dos transportes…), na sua organização espacial (centralidade vs.
periferias), na sua organização política, militar e económica (com o crescente
poder asiático a determinar a posição central no mapa), e nas tecnologias
utilizadas pela generalidade de quem nele habita, este mapa apresenta aos respetivos
utilizadores. Cada um dos quais conformará a sua intervenção no mundo que
habita a essa, ou porventura outra, configuração deste último.
A mediação hermenêutica da tecnologia
Essa mediação entre o mundo e os seres humanos pelas tecnologias tem sido enfatizada, desde as últimas décadas do século passado, por autores como Don Ihde. O qual lhe reconhece duas dimensões: uma "existencial" – pela qual nós intervimos e habitamos o mundo mediante tecnologias (portos, navios, bússolas e mapas…) – a outra "hermenêutica" – pela qual o mundo nos fica configurado, e assim o interpretamos, mediante artefactos como precisamente mapas ou bússolas. Essas duas dimensões cruzam-se em tudo o que funciona para nós como as brocas para dentistas experientes, os quais não só intervêm nos dentes dos pacientes mediante elas, mas, nesta mediação, interpretam no comportamento da broca o estado do dente em intervenção.
Em conformidade, podemos interpretar o mapa anexo
agora apenas como artefacto técnico, evidenciando o que se verifica com tantos outros artefactos.
Esse filósofo americano distinguiu quatro modos da
referida mediação, cada um atravessado nos dois sentidos pelas referidas
dimensões. Outros autores têm desenvolvido esta pista reflexiva, reconhecendo
mais modos de mediação tecnológica, inclusive na consideração do recente
desenvolvimento de tecnologias disruptivas baseadas em Inteligência Artificial
(em "Da influência das tecnologias públicas", na edição de novembro deste jornal, abordei alguns desses outros desenvolvimentos). Mas hoje
aproveitarei o caso da tecnologia cartográfica, também mencionada por Ihde,
para apontar aqui duas notas, por sinal convergentes, sobre o modo de mediação
que ele designou particularmente "hermenêutica".
Diferentemente da mediação por "incorporação" da
tecnologia – p. ex. óculos graduados para compensar miopia – em que o artefacto
normalmente passa despercebido e o nosso foco se encontra no objeto visado
mediante aquele artefacto, na mediação hermenêutica o foco imediato encontra-se
no próprio artefacto. Cuja leitura, então, facultará uma reconstituição do objeto
mediado pelo artefacto.
É o caso da conceção geográfica do mundo mediante a leitura e interpretação de um mapa. Ou os casos de interpretação da visão de soldados esverdeados em movimento num meio escuro, mediante óculos de visão noturna; de pequenos tubos ou bolas, vistos em microscópios, que representarão bactérias das quais nenhum sentido nosso consegue dar conta diretamente; ou de um espectro de cores, a interpretar racionalmente como sinal dos anos-luz a que se encontra uma estrela visada num telescópio, imagem esta que já não verifica qualquer isomorfismo com o objeto referido.
Nessa crescente perda de isomorfia, importa notar que
as competências hermenêuticas se tornam correspondentemente decisivas para uma utilização funcional dos artefactos e, nessas funções práticas, uma existência adequada ao mundo que habitamos.
Por conseguinte, pelo lado dos utilizadores das
tecnologias, e tanto mais quanto mais tecnologizado se encontra o mundo, devemos
cuidar de desenvolver e aprimorar essas competências.
Pelo lado dos designers das tecnologias através
das quais o mundo se nos apresentará, importa que os mostradores ou painéis de
leitura sejam o mais claros possível, inclusive na articulação das respetivas
leituras particulares.
Uma outra nota decorre de se verificar, na mediação hermenêutica, um ponto cego onde esta mais facilmente falhará e menos disso se dará conta: a articulação entre a fração do mundo representado pelo artefacto técnico e este último.
Com efeito, por um lado, a tecnologia apenas representa,
não apresenta em corpo próprio a sua referência. Podendo, pois, falhar nessa
tradução. Mas, por outro
lado, a articulação entre essa referência e a estrutura mediadora está para
além do foco do utilizador, que se queda no artefacto – nomeadamente, nos
respetivos mostradores e comandos. Assim, esse utilizador mal pode dar conta de
alguma falha na referida articulação.
Esse défice avaliador do utilizador pode, no
entanto, ser reduzido com a utilização de mediações redundantes. No exemplo
aqui abordado, desde outras representações da Terra até às estatísticas
demográficas, económicas etc. implicadas na mencionada escolha do designer a
favor das possíveis relações entre as regiões, e contra o isomorfismo ou a
proporção das áreas referidas.
No entanto, como introduzi acima, nenhuma destas
representações constitui a pedra de toque das restantes. E nenhuma esgota
tudo o que haverá na referência delas todas.
Pragmaticamente, fica a sugestão de que a mencionada pedra de toque apenas poderá ser a resolução, ou falta desta, dos problemas
em função dos quais se utilizem esses ou outros artefactos.
Importará, assim, a cada agente desenvolver as competências
heurísticas de resolução de problemas práticos ou teóricos, frequentemente mediante artefactos técnicos. Entre as quais se
contam as competências de leitura e interpretação crítica, que facultam uma
hermenêutica tecnológica funcional.
Designadamente, uma hermenêutica não só, tecnologicamente ingénua, do conteúdo ou mensagem explícita que o artefacto sugira – como a organização do mundo, mediante um dado mapa – mas também, tecnologicamente crítica, da forma como o artefacto, enquanto tal, sugere essa mensagem. Com todas as virtualidades, mas também insuficiências e enviesamentos, que qualquer sugestão pode comportar.
revisão do original in Etc. e Tal - Jornal, 30/04/2023
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