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Porto, Campanhã |
Projetos como esses evidenciam questões
que são transversais a todas as tecnologias. Nomeadamente, relativas à
influência destas últimas sobre os seus utilizadores, e as correspondentes opções
feitas não só pelos designers e produtores, mas também por todos quantos
aceitam e utilizam as tecnologias disponibilizadas.
Me parece que a muitos de nós, bem além
daquela freguesia oriental do Porto, faltará alguma literacia sociotécnica para
lidarmos com essas questões. Creio que as ferramentas exemplificadas em seguida
nos ajudam nessa lida.
As quatro combinações de força e visibilidade das tecnologias
De automóvel, entro numa rua estreita ou
com curvas. Alguém, fosse dada a experiência de algum acidente concreto fosse por
outra razão, ou até já algum algoritmo, então possivelmente por semelhança a outros arruamentos, terá determinado a posição ali de um sinal a ordenar o limite de velocidade em 40km/h. Esta tecnologia é-me bem visível quando
a utilizo. Já a força com que ela se impõe é irrelevante – não é o poste no
passeio, a placa e o signo pintado que me impedem de conduzir a 80km/h.
Suponhamos que por enorme necessidade, ou
por pura e simples parvoíce, atravesso a rua a essa última velocidade (sobrevivo)
e, mais à frente, pretendo entrar por uma ruela que aquele legislador decidira
fechar absolutamente ao tráfego. Para cumprir essa decisão, terá sido ali
montado um sistema de bollards (cilindros) de aço que se retraiam abaixo da
superfície mediante comandos eletromagnéticos fornecidos apenas a moradores ou
comerciantes (não seria o meu caso). Esta tecnologia é-me tão percetível quanto
a anterior. Mas, a não ser que eu tenha passado do carro para um tanque de
guerra, esta agora impõe-se fisicamente.
Deixado o automóvel noutro sítio, nessa
ruela paro num restaurante com o menu exposto à porta, entro e peço o prato
cujo nome era o mais destacado no menu – isto é, na configuração deste último
artefacto, a componente que tinha a função comunicacional de representar aquele
prato fora evidenciada ao utilizador. Também é o prato mais caro, mas, antes de
eu considerar os preços, já integrara a sugestão do menu.
À saída, dizem-me que apenas posso pagar
com o cartão, felizmente tenho um comigo. Passam-no num leitor, lamentam
simpaticamente não ter funcionado, passam-no num segundo aparelho, e saio
depois de pagar o que era devido. Sem eu saber, neste aparelho também ficaram
os dados de acesso à minha conta bancária.
N. Tromp, P-P. Verbeek e P. Hekkert
distinguem a influência das tecnologias sobre os seus utilizadores segundo as
dimensões de "visibilidade" e "força" delas nas respetivas utilizações.
Designam as exemplificadas pela placa metálica com um signo – visíveis mas
fracas – como "persuasivas". As da classe dos cilindros metálicos – visíveis e
fortes – como "coercivas". As equivalentes à configuração de um expositor que destaque
a sugestão de um comportamento – pouco visíveis e fracas – como "sedutoras". E as
que realizam funções secretas – tecnologias pouco visíveis mas fortes – como "decisivas".
Como facilmente se intui, quer a dimensão
da influência dos designers e produtores das tecnologias sobre os utilizadores
delas, quer a capacidade destes últimos se escolherem face a essas tecnologias,
divergem nesses quatro quadrantes.
Por consequência, de cada vez que se
pretenda resolver uma situação mediante a implementação de alguma tecnologia,
aqueles designers e produtores não escapam à decisão do quadrante em que desenharão
a tecnologia desejada. E todos os destinatários dessa proposta tecnológica – os
seus possíveis utilizadores – não se livram de alguma corresponsabilidade pelo
menos como eleitores para o órgão que a licencie. Isto, enquanto preservarmos
uma democracia liberal.
Liberdade individual e posição das
tecnologias à-frente-dos-olhos
Precisamente para preservar a liberdade
dessas múltiplas decisões, num regime demoliberal – sustentado não só por
liberais mas também por conservadores e socialistas não autoritários – as
tecnologias de utilização pública devem ser o mais visíveis possível.
Em particular, as coercivas devem ser tão
reversíveis quanto tecnicamente possível – no respeito por eventuais futuras
maiorias que as queiram desmantelar.
E as tecnologias que não forem
reversíveis, como pontes etc., devem implicar nas respetivas decisões, sem
prejuízo do tempo útil, deliberações públicas com explicitação dos fatores
relevantes, das alternativas técnica e economicamente viáveis mais as
respetivas consequências, e dos valores éticos segundo os quais uns desses
parâmetros são privilegiados em detrimento de outros. Com os decisores a
assumir as responsabilidades, prática, da determinação do tempo útil para a
deliberação; epistémica, do reconhecimento dos parâmetros e dos seus valores
concretos; e ética, da hierarquia dos valores de decisão. É fácil de perceber
com um exemplo: simplesmente o contrário do que se tem feito no caso do "novo
aeroporto de Lisboa".
Se além disso, nesse regime, votarmos por instituições
formais (regras) estritamente liberais, e se, principalmente, desenvolvermos uma
cultura liberal na interpretação dessas ou outras instituições (eis o cerne do
obstáculo ao liberalismo estrito), na decisão sobre tecnologias públicas
favoreceremos, no seio das visíveis, as especificamente persuasivas.
Voltando, porém, ao mero requisito
demoliberal da maior visibilidade possível, os designers e produtores das
tecnologias públicas ganharão em considerar a distinção, por S. Dorrestijn e H.
Voordijk, entre quatro modos de encontro, digamos assim, entre as tecnologias e
os respetivos utilizadores – parcialmente correspondentes aos anteriores
quadrantes.
Designadamente, as tecnologias vísiveis
encontram-se (na expressão destes autores) “before-the-eye” dos utilizadores. Ou
seja, são-lhes patentes nas suas diversas dimensões ou implicações, de forma
que os utilizadores as podem interpretar. Se esta interpretação facultar
liberdade de utilização, essas tecnologias serão mesmo estritamente
persuasivas.
Nos encontros físicos, em que as
tecnologias e os corpos dos utilizadores se cruzam e condicionam mutuamente, as
primeiras encontram-se “to-the-hand” dos segundos. Os autores acentuam a
coerção destes cruzamentos físicos, como em lombas para redução da velocidade
do tráfego. Mas a própria designação escolhida admite o manuseio de
tecnologias, o qual pode ser livre e intencional, como nos usos de um martelo,
do hardware de um computador etc. Para isso, estas tecnologias também se
deverão encontrar à-frente-dos-olhos.
Tecnologias que, por outro lado,
condicionem os contextos da habitação e trabalho humanos, encontram-se
“behind-the-back”. E tecnologias que orientem, utópica ou distopicamente,
aquele trabalho, encontram-se “above-the-head” de quem as considere. Haveremos
de ter oportunidade para abordar aqui estas categorias.
Posto isso, continuando no pressuposto da
sustentação do regime demoliberal, deveremos requerer que as tecnologias
públicas sejam desenhadas de forma a se nos encontrarem tão à-frente-dos-olhos
quanto possível. Aliás, não só em relação às configurações que propiciam as
funções práticas que realizamos ao utilizá-las, mas mesmo nas implicações ou
consequências psicológicas, físicas e socioculturais que essa utilização induza.
No caso de software e soluções digitais, desde a facilidade de acesso a informação até à desconsideração do organismo e dos corpos em detrimento de avatares etc. Esperemos que o CommuniCity se possa
constituir também como um exemplo da consideração por estas dimensões
sociotécnicas e políticas.
original: "Da influência das tecnologias públicas", Etc. e Tal - Jornal, 01/11/2022
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