Avatar: O Caminho da Água, de James Cameron, já teve em Portugal mais de 1M de espetadores (fonte: Instituto do Cinema e do Audiovisual). Junte-se-lhe a audiência do primeiro Avatar, que com ele partilha o pódio dos 3 filmes mais vistos nos últimos 18 anos, e ficamos com uma pista das mensagens cinematográficas atualmente com maior adesão entre nós. Como, de resto, noutras paragens.
Também lá fui, de arrasto pelas minhas filhas, que
em dias de natal se encheram de nostalgia pela assistência em família às
imagens originais do mundo de "Pandora". O ritual familiar, como sempre, foi
doce. E o pretexto pouco conta comparado com isto. Mas aquelas recentes
estatísticas fazem-me revisitar esse filme no tom de que ele progressivamente
se me revestiu: sombrio.
O deleite da Natureza… mas que “natureza”?
Neste novo capítulo da saga, era de esperar a ligação à versão fantástica de Pocahontas que foi o primeiro Avatar, com as
invocações a uma mãe-natureza em rituais sexistas onde os humanos masculinos são
apenas parcialmente admitidos, em oposição a uma malévola invasão economicista e tecnófila. A novidade agora é aquela chamada dos espetadores quase
para dentro de Pandora, à margem da variação que desta feita se narra da
conhecida intriga. Mas para onde, e exatamente como, se faz essa chamada?
Chama-se a um gozo com a pujança, a pureza ainda
que pontualmente perigosa e uma aparente espontaneidade do que de espontâneo nada tem: produtos intencionais da imaginação. Isto é, composições
de imagens sensíveis, tanto quanto a memória as preserva, uma vez abstraídas
das unidades em que, naturalmente, as percecionamos – p. ex. a imagem de asas de arraia marinha, implantada na imagem de um corpo
de dinossauro carnívoro… e aí temos um ikran (googlei: é esse o nome do bicho
em na’vi).
Em contraposição à fealdade e bruteza de umas
máquinas cuja utilização ameaça e destrói aquela idílica fantasia. Máquinas
cujo design, entretanto, mimetiza os nossos bem conhecidos e naturais insetos,
caranguejos etc.
Ou seja, somos chamados à fruição de artefactos apresentados
como naturais, num horror ou revolta contra sugestões de animais apresentadas por
artefactos.
E como ocorre essa chamada? Artificiosamente. Quer
no sentido de produção de artefactos, quer no sentido de ilusão.
No primeiro sentido, o espetador é chamado a
Pandora mediante os efeitos especiais cinematográficos que distinguem o filme.
Este constitui-se assim, primeiramente, como uma ode às técnicas e tecnologias
que podem servir o cinema.
No segundo sentido do artifício, essas técnicas e
tecnologias recalcam-se sob a explícita ode a uma Natureza que, embora
fictícia, se não nega a servir de paradigma para a interpretação do nosso
mundo.
A culturalidade da ‘Natureza’ e a naturalidade da
cultura
Não se nega, mas também não pode ser
explicitamente assumida como tal. Sob pena de quem o fizer ter de justificar a sua
refutação da conclusão de William Balée sobre a flora amazónica ("The culture of
Amazonian forests", 1989): essa floresta, longe de ser uma fonte espontânea de
formas de vida diferenciadas mas harmonicamente interligadas no seio de uma tal geração, evoluiu antes, nos últimos milhares de anos, conforme a
ação de uma forma de vida específica: a das pequenas comunidades humanas. Concretamente, as zonas
afetadas pelas atividades dos índios apresentam uma densidade de plantas úteis
aos seres humanos muito superior a zonas sem intervenção humana. Se Cameron
pretendeu aproximar os seus na’vi dos índios amazónicos, mais do que falhar o
alvo, faltou-lhe o alvo.
Tal como falta a M. Heidegger e a quem o segue na
distinção entre uma técnica moderna, violentadora da Natureza, e uma técnica
anterior pela qual o ser humano se articularia com essa última. Dão como
exemplo o contraste entre barragens que domam rios para a produção de energia
elétrica e moinhos que aproveitam o vento. Ignoram, assim, as intervenções
tecnológicas para controlar os rios Loire ou Ródano desde o séc. XII, ou a
gestão das florestas europeias desde o séc. XIV (no que D. Dinis foi um dos precursores).
Como Étienne Anheim concluiu no colóquio Les
Natures en Question, organizado pelo Collège de France em 2017, não há
sustentação historiográfica para a tese de uma conceção estritamente europeia e
moderna da Natureza como despensa de recursos destinados à exploração humana.
Ficamos, antes, no plural desse título: diversas
conceções de "Natureza" se têm sucedido e interrelacionado. Desde a referida "mãe" geradora e unificadora, passando pela physis grega de processos regulares
teleologicamente orientados, e pela tendência naturalista moderna para um sistema de
processos cósmicos mecanicamente organizados à revelia de qualquer especulação
cultural, até à simples ausência de um tal conceito englobante ("Natureza") nas
reflexões tradicionais chinesas sobre as mudanças físicas, sobre produções
espontâneas sem intervenção humana etc. Mais participantes no referido colóquio enfatizaram isto.
Simetricamente, todas essas culturas têm versado fenómenos
que algumas reuniram sob conceitos como os mencionados, os quais se remetem mutuamente ainda que se não
traduzam literalmente.
Em suma, não se encontra uma tal de "Natureza" em
oposição à cultura humana, nomeadamente a tecnológica. Mas a complexidade destes usos concetuais também não significa que se
não justifiquem. Isto é, reconhecem-se acontecimentos de que se tem de dar
conta, e todos aqueles conceitos são ferramentas para isto mesmo.
Fugir a essa complexidade, pela demissão de se dar conta de tais acontecimentos, será a solução mais perversa. Por exemplo, num desmentido radical de qualquer naturalidade, mediante o uso de tecnologias que, todavia, se ocultam sob as sugestões que promovem de uma Natureza então fantástica.
Resta-me fazer votos para que a maioria dos espetadores de Avatar o vão ver por razões paralelas, ou que dessa assistência não retirem mais do que um entretenimento com pipocas e efeitos tecnológicos especiais.
in Etc. e Tal - Jornal, 28/02/2023
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