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Lusail, The Design Build Network |
Referiremos abaixo a definição de ‘imaginário sociotécnico’. Mas,
entretanto, apontemos que uma das autoras desse conceito, Sheila Jasanoff,
salienta que o método mais indispensável para a explicitação de tais
imaginários é a comparação entre países ou regiões, entre setores políticos ou
entre épocas. Atender ao que Lusail indicie, pois, será uma boa forma de reconhecermos
o que, em Portugal, tomamos como a ordem natural das coisas, mas que se
constitui como uma nossa opção e construção coletiva.
Para além desse reconhecimento, sabe-se o que a grande civilização Islâmica fez a uma civilização
Ocidental ainda nos primeiros passos no fim do primeiro milénio. E o que esta
civilização devolveu à anterior assim que inverteu a relação de poder,
nomeadamente consubstanciado tecnologicamente. De resto, como é de norma na
história: parafraseando a máxima romana sobre a paz e a guerra, se queres a
cooperação e o comércio mutuamente vantajoso, prepara-te para a competição. Como
nos estaremos então a preparar face a projetos como aqueles árabes?
O projeto de Lusail
A nova cidade começou a ser construída há menos de
vinte anos. Terá estruturas de habitação, de serviços e negócios, e de lazer
para cerca de meio milhão de pessoas entre habitantes, trabalhadores e
visitantes. É uma cidade verde, numa costa antes deserta. No seu subsolo,
encontram-se estruturas de circulação de água fria para arrefecer perto de mil
edifícios, de transporte do lixo doméstico para as centrais de tratamento,
subestações de energia elétrica, túneis para pedestres interligando parques de
estacionamento. A mobilidade urbana, além de sustentável – transportes
coletivos, partilha de veículos, ciclovias – tem um sistema de gerenciamento
inteligente. Para o qual concorrem informações colhidas por sensores sobre
fluxos de tráfego, disponibilidades de estacionamento etc. O funcionamento dos
equipamentos urbanos é otimizado pela Internet das Coisas.
Este projeto é parte de Qatar 2030, a Visão
nacional do futuro para o país. O conceito de ‘imaginário sociotécnico’ designa
precisamente tais ‘visões’ e as respetivas implementações materiais.
Imaginário sociotécnico e coprodução do mundo
Esse conceito significa qualquer visão de um
futuro desejável, sustentada coletivamente, estabilizada institucionalmente e
implementada publicamente, mediante uma compreensão partilhada da forma de vida
social e de ordem social a alcançar, e suportada, por avanços científicos e
tecnológicos (Jasanoff et al., 2015). Não é difícil interpretar no projeto de Lusail a forma e a ordem de vida em geral desejáveis pelos catari.
A referida autora reporta esse conceito ao
de ‘coprodução’ do conhecimento do que o mundo é, e da prescrição do que este
deve ser. Isto é, estas prescrições serão limitadas ou condicionadas pelos
conhecimentos dos estados de coisas atuais e dos possíveis, tanto quanto os
desenvolvimentos destes conhecimentos serão orientados por pressupostos éticos
ou prescritivos. Uns e outros são condicionados – alguns autores pretendem
mesmo que ‘construídos’ – socialmente, de modo que cada agente tenderá a tomar
como verdadeiras e como boas as fórmulas geradas pela sociedade em que se integra.
Assim, os imaginários sociotécnicos
português e catari indiciarão o que uns e outros assumem como verdadeiro e como
bom.
Em divergência de Jasanoff e dos autores que a acompanham, julgo que os dois processos dessa coprodução não são rigorosamente simétricos, e que não se constituem propriamente como construções levadas a cabo pelos respetivos sujeitos. Mas, em abordagens introdutórias como esta, creio que podemos usar estas ferramentas concetuais sem maior afinamento. Em particular, para que a comparação com o imaginário sociotécnico indiciado por Lusail melhor nos exponha o imaginário sociotécnico que estaremos a implementar.
Que imaginário é o nosso?
Desde logo, há já mais de um quarto de século, a
sociedade portuguesa tem mandatado a mesma organização política – o Partido
Socialista – para implementar o imaginário coletivo que estejamos a projetar. A
única exceção propriamente foram três anos há duas décadas. Já na sequência da
quase bancarrota de 2011, o governo de então teve de implementar um programa que
tinha sido acordado por um governo socialista, para resolver a situação criada
durante o exercício deste governo anterior. Para o bem ou para o mal, esse
partido esteve imbricado nos anos da troika. Portanto, o que tem sido
implementado nestas quase três décadas, assim como o que tem sido
desconsiderado, representa uma opção dominante da nossa sociedade.
Tomemos dois conjuntos de indicadores que me
parece poderem ser significativos desse imaginário.
Por um lado, a aposta na rede rodoviária. Entre
1985, antes da adesão à CEE, e 1995, início do atual ciclo de poder acima
apontado, o país passou de 196 km para 687 km de autoestrada (fonte: Pordata).
Incluindo a ligação entre Setúbal e Braga, passando por Lisboa e Porto, num
retângulo onde vivem 4/5 da população portuguesa. Cumprido esse objetivo,
porém, até 2012 construíram-se mais 2.301 km de autoestrada. Tornando-se
Portugal o segundo país da Europa com mais quilómetros desse tipo de via de
transporte por habitante, e o quarto em números absolutos.
Objetivamente, essa opção técnica não se enquadrou num reforço da produção de bens transacionáveis, pela facilitação do seu transporte rodoviário. Dado que o saldo da nossa balança comercial de bens em percentagem do PIB, entre 1996 e 2011, se manteve entre os 8,2 e os 13,4 pontos negativos, para entre 2012 e 2016 o défice diminuir para a casa dos 5 pontos negativos, e depois voltar a subir para a casa dos 7 pontos negativos (Pordata).
Não vou procurar os números de novos centros comerciais, pavilhões multiusos… também novas escolas e novos hospitais, construídos por todo o país nesse quarto de século. Mas aposto que reforçarão a interpretação de que o futuro que desejamos, numa visão sustentada coletivamente, estabilizada institucionalmente e implementada publicamente, e que suportamos por empreendimentos técnicos como esses, esgota no consumo e no conforto a forma de vida social e de ordem social a alcançar. A questão da sustentabilidade, nomeadamente produtiva, dessas condições de vida parece ser simplesmente desconsiderada.
Por outro lado, tomemos a categoria da
sustentabilidade mas com a conotação ambiental que hoje lhe é frequentemente
atribuída. Desde os primeiros relatórios do IPCC, estamos avisados para o
agravamento, neste território ibérico, de secas no verão e cheias no inverno.
Que estruturas técnicas de adaptação a essas alterações têm sido construídas? Apesar
de empreendimentos como o do Alqueva, eventos como os incêndios de Pedrógão, ou desde as cíclicas ameaças de falta de água às
cheias de Lisboa, sugerem que as estruturas insuficientes. E não há notícia de novas
estruturas em número e dimensão decisivas estarem assumidas, de urgência, nos atuais orçamentos de Estado e
autárquicos.
Esta insuficiência de mobilização dos recursos
nacionais e comunitários, por parte dos agentes portugueses decisivos (não
apenas governamentais e autárquicos), para se implementar técnica e
materialmente as aspirações de uns quantos indivíduos por uma adaptação
ambiental mantém o imaginário sociotécnico português a leste desta sustentação. Como, aliás, aí se mantinha enquanto o arq. Ribeiro Teles pregava no
deserto ou dirigia aos peixes os seus sermões sobre formas de mitigação de
violações ambientais.
Mediante estes ou outros indicadores,
comparemo-nos aos árabes e à Visão Qatar 2030. Depois, não é preciso conhecer
história das civilizações, basta o bom senso, para prevermos o que, em breve e
normalmente, resultará da correlação entre estes dois imaginários
sociotécnicos.
original in Etc. e Tal - Jornal, 31/12/2022
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