Numa iniciativa convergente, a ENTA, Escola de Novas Tecnologias dos Açores, tem neste momento abertas as inscrições num dos (creio) ainda poucos cursos (nível 5) em Portugal de cibersegurança. Entre as suas diversas unidades
de formação, conta-se uma sobre “Ética e deontologia profissionais”. Que prevê
o reconhecimento de “fatores deontológicos” e “exigências éticas” que contribuirão para aquela resposta a oportunidades e riscos.
A qual certamente também receberá contributos, daqui a duas semanas, da Conferência Ibero-Atlântica: Justiça Penal e Novas Tecnologias, no Nonagon, Lagoa.
Excelentes iniciativas, que em períodos de aceleração do tempo histórico – como parece estar a suceder – só as sociedades que se ajustam têm sucesso! Numa pequena contribuição, deixo uma pista, entre outras possíveis, para a literacia tecnológica que faculta o acompanhamento de eventos como estes, mas que principalmente se desenvolverá neles.
Sobre o horizonte ou alcance das intervenções tecnológicas, estas condicionam tanto o mundo onde as tecnologias são utilizadas, como os agentes que as utilizam (uma das formas desse
duplo condicionamento foi visada na última crónica desta coluna, “Manuais escolares digitais e mediação tecnológica”). A dimensão ética dessas intervenções estende-se, pois, nestes dois
sentidos.
Nessa dimensão, a tecnologia – como conjunto de artefactos funcionais, mas também
como atividades de produção e de utilização desses artefactos, e ainda como forma
de pensamento em geral – tem sido carregada de valores opostos. Designadamente,
na esteira da utopia de Francis Bacon (séc. XVII), o pensamento tecnológico
constituirá a matriz da compreensão da realidade, e a produção tecnológica haverá
de satisfazer todas as necessidades da vida humana. Ao contrário, as distopias das
primeiras décadas do séc. XX (já esbocei aqui uma introdução à de M. Heidegger)
julgaram a tecnologia das grandes máquinas, crescentemente autónomas etc., como
alienante da condição humana.
Em alternativa,
podemos negar um valor da tecnologia como tal, e evitar a anterior dicotomia. Esta
recusa, no entanto, abre uma outra disjunção. De um lado, recusar-se-á absolutamente
aquele valor, positivo ou negativo, remetendo-se estes últimos para cada
utilização dos artefactos técnicos. Por exemplo, uma espingarda não é julgada boa ou
má, apenas cada uma das suas utilizações o será. Esta neutralidade moral das
tecnologias foi bastante defendida a meados do séc. XX. Mas tem sido refutada,
do outro lado, por autores como Langdon Winner ou Peter-Paul Verbeek, que
enfatizam o alcance ético do design de cada tecnologia concreta. Pois a
configuração e os materiais de cada uma induzem o utilizador a certos
comportamentos em detrimento de outros. Segundo opções de que os designers e os
produtores são responsáveis.
Assim possam aquelas e outras iniciativas contribuir para a nossa integração e tratamento de questões como estas.
in Correio dos Açores, 05/06/2022
Comentários
Enviar um comentário
Qualquer comentário cortês é bem-vindo, em particular se for crítico ou sugerir desenvolvimentos ao post.