Cibersegurança, literacia e deontologia tecnológicas


Realizou-se recentemente o congresso “Tech and Economics: the way forward”, da Associação Portuguesa para o Desenvolvimento das Comunicações. Numa sua apresentação, o Presidente da APDC (in: semanário Novo, 10/05/2022) salientou que novas tecnologias, como o 5G, estão a provocar disrupções no mundo do trabalho e na sociedade. E que o incremento da literacia digital é urgente para respondermos às oportunidades e aos riscos dessas tecnologias. Nomeadamente, na área de cibersegurança.

Numa iniciativa convergente, a ENTA, Escola de Novas Tecnologias dos Açores, tem neste momento abertas as inscrições num dos (creio) ainda poucos cursos (nível 5) em Portugal de cibersegurança. Entre as suas diversas unidades de formação, conta-se uma sobre “Ética e deontologia profissionais”. Que prevê o reconhecimento de “fatores deontológicos” e “exigências éticas” que contribuirão para aquela resposta a oportunidades e riscos.

A qual certamente também receberá contributos, daqui a duas semanas, da Conferência Ibero-Atlântica: Justiça Penal e Novas Tecnologias, no Nonagon, Lagoa.

Excelentes iniciativas, que em períodos de aceleração do tempo histórico – como parece estar a suceder – só as sociedades que se ajustam têm sucesso! Numa pequena contribuição, deixo uma pista, entre outras possíveis, para a literacia tecnológica que faculta o acompanhamento de eventos como estes, mas que principalmente se desenvolverá neles.

Sobre o horizonte ou alcance das intervenções tecnológicas, estas condicionam tanto o mundo onde as tecnologias são utilizadas, como os agentes que as utilizam (uma das formas desse duplo condicionamento foi visada na última crónica desta coluna, “Manuais escolares digitais e mediação tecnológica”). A dimensão ética dessas intervenções estende-se, pois, nestes dois sentidos.

Nessa dimensão, a tecnologia – como conjunto de artefactos funcionais, mas também como atividades de produção e de utilização desses artefactos, e ainda como forma de pensamento em geral – tem sido carregada de valores opostos. Designadamente, na esteira da utopia de Francis Bacon (séc. XVII), o pensamento tecnológico constituirá a matriz da compreensão da realidade, e a produção tecnológica haverá de satisfazer todas as necessidades da vida humana. Ao contrário, as distopias das primeiras décadas do séc. XX (já esbocei aqui uma introdução à de M. Heidegger) julgaram a tecnologia das grandes máquinas, crescentemente autónomas etc., como alienante da condição humana.

Em alternativa, podemos negar um valor da tecnologia como tal, e evitar a anterior dicotomia. Esta recusa, no entanto, abre uma outra disjunção. De um lado, recusar-se-á absolutamente aquele valor, positivo ou negativo, remetendo-se estes últimos para cada utilização dos artefactos técnicos. Por exemplo, uma espingarda não é julgada boa ou má, apenas cada uma das suas utilizações o será. Esta neutralidade moral das tecnologias foi bastante defendida a meados do séc. XX. Mas tem sido refutada, do outro lado, por autores como Langdon Winner ou Peter-Paul Verbeek, que enfatizam o alcance ético do design de cada tecnologia concreta. Pois a configuração e os materiais de cada uma induzem o utilizador a certos comportamentos em detrimento de outros. Segundo opções de que os designers e os produtores são responsáveis.

Assim possam aquelas e outras iniciativas contribuir para a nossa integração e tratamento de questões como estas.


in Correio dos Açores, 05/06/2022

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