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Portugal Smart Cities Summit |
Sobre
atuais projetos autárquicos que omitam o tema da “cidade inteligente” saberemos
que, na melhor hipótese, se orientam rumo ao passado. Na pior hipótese, estarão
a abrir a porta a interferências dos detentores dos cargos executivos, sejam políticos
ou técnicos, nas vidas da generalidade dos munícipes e visitantes dos
concelhos, a um ponto que eventualmente nos aproxime do 1984 de George Orwell. É com
este risco que nos pre-ocuparemos nestas linhas.
Na última semana, adotei aqui a
definição das cidades inteligentes como a “imersão nas estruturas urbanas (…)
de sistemas de sensores (…) que permanentemente recolham informação, a qual
será classificada por inteligência artificial [IA], investida da
responsabilidade de tomada de decisões”.
Mas,
como bem questionou João Moniz também nestas
páginas já há pouco mais de 2 anos, “quem é que vai definir
os critérios de recolha de dados, e posteriores algoritmos de análise?” (Um
“algoritmo” é uma sequência de instruções de procedimentos, p. ex. a regra de 3
simples, as receitas de culinária etc. Os algoritmos que constituem a IA
distinguem-se por poderem ter muito mais passos e, principalmente, por
trabalharem conjuntos incomensuravelmente maiores de dados à entrada).
Da
inteligência e da artificialidade da "IA"
Talvez
carregando demasiado nas teclas mas de forma significativa, numa recente entrevista
ao The Guardian, a investigadora Kate Crawford disse que a IA não é
propriamente “artificial” ou não natural – pois o seu processamento implica
muito trabalho humano, recursos naturais etc. – nem “inteligente” no sentido
humano do termo – que (lembremos desde Howard Gardner e António Damásio até
Aristóteles) é bem mais complexo e abrangente do que a mera computação de dados.
Na qual, então, os artefactos eletrónicos são muitíssimo mais poderosos do que
os cérebros animais.
De
qualquer modo, são possíveis enviesamentos humanos da IA em quaisquer destes
seus momentos: i) os tipos de dados relevantes para cada caso são
escolhidos por seres humanos; ii) a rotulação dos dados obtidos, i.e. a interpretação
do seu significado, é feita por seres humanos (em IA com capacidade de
aprendizagem, apenas no modo dito com “supervisão”); tal como somos nós, na IA
sem aprendizagem autónoma, que iii) desenhamos os algoritmos e iv)
os “treinamos” (os desenvolvemos ou apuramos); enfim, v) a avaliação dos
resultados de qualquer tecnologia é ainda (!) humana.
Em
alternativa, a IA com capacidade de aprendizagem desenvolve por si própria algoritmos
complexos na base de algoritmos elementares. Mas então não se dirá que os
resultados são objetivos ou neutros, dir-se-á apenas que as suas regras escapam
ao controlo e mesmo à compreensão humana – como o AlphaGo Zero no jogo
do go.
Daí
decorrem intervenções humanas e/ou equívocos técnicos no funcionamento de
cidades inteligentes, como nestes dois casos: no exercício de algoritmos que
calculam a probabilidade de crime em determinados contextos e que podem espoletar
o envio preventivo de polícia, além de haver testemunhos de preconceitos sociais na seleção
dos dados que serão significativos de situações de perigo, a IA tem falhado em
interpretações como a de certos comportamentos como dança ou como combate – cf.
entrevista de Crawford sobre leitura facial de emoções, classificação racial
etc. Os algoritmos de gestão do tráfego escolhem as melhores rotas, mas estas
diferem conforme o valor primordial escolhido pelos operadores humanos seja ou
a maior rapidez da deslocação, ou a menor emissão de CO2 etc.
De tudo isso decorre a imperiosidade de uma reflexão ético-política sobre a utilização de IA em
estruturas urbanas e do acompanhamento crítico desta utilização, por todos nós
que pretendemos salvaguardar algum nível de liberdade individual na utilização
das estruturas urbanas, e assim sustentamos a democracia liberal.
O “espectro
de Berlin”
O
nosso problema – dos democratas liberais – nessa salvaguarda, é que “liberdade”
parece ser o nome de um campo de posições políticas onde nos encontramos, mas onde
também nos diferenciamos. Para nos concertarmos nesse campo, podemos usar o seu
mapa delineado por Isaiah Berlin no célebre ensaio Two
Concepts of Liberty (1969). Nomeadamente, os conceitos de liberdade
“negativa” e liberdade “positiva”. A primeira é constituída pela mera ausência
de imposições humanas externas sobre cada indivíduo. A segunda é constituída pelas
condições de possibilidade da abertura de um leque de alternativas, e da
capacidade pessoal de escolha e implementação de alguma delas.
Mas
tomemos o caso do limite institucional da velocidade na estrada: a liberdade
negativa da sua ausência reduz a liberdade positiva das vítimas dos acidentes
causados por altas velocidades; assim como a preservação desta segunda liberdade,
pela imposição de um limite, reduz a anterior. Entretanto, qualquer liberdade,
nomeadamente a negativa, implica alguma liberdade positiva – sem alternativas,
ou sem escolha, ou sem implementação da alternativa escolhida, não fará sentido
usar a palavra “liberdade”. Assim como não diremos que um tal empoderamento
pessoal que oriente absolutamente o agente constitui este último como “livre”.
Entre
essas duas noções estende-se, pois, um espectro ao longo do qual todos quantos
tomamos a liberdade individual como valor político último – aquele que em caso
nenhum poderá ser violado – de cada vez escolhemos onde nos posicionar.
Em
relação a projetos estruturantes como os das cidades inteligentes, cabe-nos então
procurar alguma condição que todos possamos admitir qual mínimo múltiplo comum
aos valores da liberdade negativa e da liberdade positiva.
Mas
este texto já vai longo para a procurarmos aqui. Hoje registemos que a
construção das cidades inteligentes – que certamente cada vez mais constituirão
o habitat construído das sociedades mais poderosas – requer a participação
crítica da generalidade dos seus habitantes, para que possamos conviver nelas
usufruindo todos do melhor da sua “inteligência”. Na próxima semana, voltarei a
estas páginas para um esboço daquele mínimo múltiplo comum.
NOTA
– Abriu recentemente no Porto a exposição Totalitarismo na Europa, que
alerta para as brutais consequências dos totalitarismos comunista, fascista e
nazi. Em boa hora o Instituto + Liberdade e a Associação Comercial do Porto a trouxeram a Portugal! Recuando do séc. XX, na Europa incluiríamos o totalitarismo do Antigo
Regime… Mas, numa prospeção antes do futuro próximo no séc. XXI, teremos de
nos preocupar também com a novidade civilizacional facultada por tecnologias
como a que abordamos acima.
adaptado de Notícias de Aveiro, 26/08/ 2021
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