Neste período de reflexão sobre os nossos concelhos e de
correspondentes projetos a médio ou a longo prazo, será preocupante passar em
silêncio o tema das Smart Cities. Entre as quais, em Portugal, se distingue a iniciativa Aveiro Tech City.
“Cidade inteligente”
Esta expressão designa a imersão nas estruturas urbanas, públicas e
eventualmente privadas, de sistemas de sensores físicos (ex. câmaras) e virtuais
(ex. contagem de intervenções em páginas digitais) que permanentemente recolham
informação, a qual será classificada por inteligência artificial, investida da
responsabilidade de tomada de decisões.
Seja pela construção de raiz de cidades inteligentes,
como o PlanIT Valley que esteve previsto para o concelho de Paredes, ou como a
cidade The Line anunciada no início deste ano pelo príncipe saudita Mohammed
bin Salman. Seja por uma imersão gradual das tecnologias de informação e
comunicação (TIC’s) inteligentes, como está acontecendo em Amesterdão desde
2009. Esta cidade constitui também um exemplo inverso à planificação top-down, tendencialmente
paternalista e até autoritária que os projetos anteriores parecem ilustrar,
tendo antes adotado uma orientação bottom-up, patente em iniciativas como a
plataforma Amsterdam Smart City.
TIC’s inteligentes na cidade: interações e impactos verificados
O modo de interação mais verificado entre os atuais
sistemas inteligentes urbanos e os respetivos utilizadores é o da disposição
das tecnologias, na sugestiva designação de Dorrestijn, “before-the-eye” dos
utilizadores. Esta expressão designa a
interação cognitiva, em que o utilizador se apercebe ou interpreta o sentido de
uma tecnologia e decide em conformidade as suas ações.
O primeiro impacto da tecnologia “diante-dos-olhos” é a orientação
dos utilizadores. Nas cidades inteligentes, é o caso da gestão do tráfego pela informação
das melhores rotas e velocidades seja em função da fluidez, seja em função da
emissão de gases poluentes etc., conforme a hierarquia de valores dos decisores
autárquicos. Também é o caso da disponibilização do cálculo de probabilidades em
cada zona de comportamentos que os legisladores classifiquem como criminosos
etc.
Outro tipo de impacto, mais intrusivo do que a mera
orientação, é a persuasão de comportamentos. Nos exemplos anteriores, pela
ativação de semáforos, ou pela ordem de envio preventivo da polícia.
Com a orientação e a persuasão, a tecnologia influencia
ainda o estilo de vida. Nos mesmos exemplos, primeiramente conforme o valor da
eficiência do tráfego, ou conforme o valor da sustentabilidade ambiental, e conforme
o valor da segurança pública.
O segundo modo de interação que também se verifica entre
as atuais TIC’s inteligentes urbanas e os habitantes e utilizadores dessas
cidades é o que o filósofo neerlandês designou “to-the-hand”: a disponibilidade
da tecnologia aos respetivos utilizadores, que normalmente ajustam os
respetivos comportamentos ao design dos artefactos sem sequer refletirem ou
decidirem sobre isso.
Nesta interação com a tecnologia que está à-mão, um
primeiro impacto é o da coerção dos utilizadores. É o caso das comuns lombas
contra a velocidade, ou do comando direto do sistema inteligente sobre cada veículo
autónomo.
Outro impacto neste modo de interação é o da “incorporação”
de tecnologias inteligentes quais extensões do corpo humano, mas que alteram as
nossas rotinas práticas. Por exemplo, pela utilização de interfaces digitais,
desde códigos QR acionados com smartphone até a implantação de dispositivos
subcutâneos.
Enfim, a interação com tecnologias inteligentes à-mão
provoca impactos subliminares. Como a sensação de se estar interconectado
globalmente, ou o deslizamento do sentido de “cidadania” de uma participação
ativa para uma mera responsividade consciente.
Outros impactos e liberdade
São de esperar outros modos de interação mais indireta e
correspondentes tipos de impacto sobre os habitantes das cidades inteligentes. Nomeadamente,
condições próprias a cada contexto com tecnologia imersiva, algum determinismo
desta sobre as pessoas, e prováveis efeitos colaterais. Bem como impactos sobre
as nossas conceções mais utópicas, mais distópicas, ou ambivalentes e
porventura ambíguas sobre a civilização que vivemos.
No entanto, nos esperados projetos e debates autárquicos
sobre a imersão de TIC’s inteligentes nos nossos concelhos, poderemos começar
pelos impactos próprios às interações diretas de que já existem verificações
empíricas. Particularmente, em relação à óbvia possibilidade de controlo da
generalidade das pessoas pelos operadores dessas tecnologias.
Além de outros impactos sempre possíveis em projetos públicos ditos
de “Potencial Interesse Nacional”, como o PlanIT Valley – nomeadamente nos
orçamentos de Estado e dívida pública, por um lado, e em contas offshore de alguns donos do Estado, por outro… Mas outras pessoas comentarão melhor
estes outros impactos. Aqui, ainda neste período de pré-campanha autárquica, voltaremos
antes à relação entre as cidades inteligentes e a liberdade dos seus habitantes.
originalmente in: Notícias de Aveiro, 10/08/2021
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