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Mensagens

As eleições legislativas e a possibilidade de um “pensamento civilizacional” ocidental

Em recente entrevista ao jornal Observador (23/03/2025), Josephine Quinn , autora de O Mundo Criou o Ocidente (Temas e Debates, 2025), sustentou que a conceção de “civilizações culturais separadas” é errada. Refere-se particularmente a um suposto Ocidente, enraizado na civilização Clássica e na tradição judaico-cristã. Julgo que o seu raciocínio, porém, não constitui um argumento, mas sim uma falácia. Aliás, a sequência de duas falácias. Cuja correção nos traz às escolhas que, de uma forma ou de outra, faremos nas próximas eleições legislativas. Se não me perdi ao longo da entrevista, o raciocínio dessa historiadora da Antiguidade (agora na universidade de Cambridge) pode ser resumido na seguinte sequência de proposições: o sentido do conceito de uma tradição coletiva humana, como “Ocidente”, decorre simplesmente da génese ou formação dessa sua referência. As culturas europeias – a que presume se referir originalmente aquele conceito – verificam inúmeros cruzamentos com outras cult...
Mensagens recentes

Antiqua et Nova: as inteligências humana e artificial

A 28 de janeiro passado, a Igreja Católica publicou a Nota referida no título acima . Da autoria de dois Dicastérios, um dos quais, por sinal, tem como Prefeito o Cardeal português Tolentino Mendonça. O documento é rico e sugestivo a diversos títulos, mas, nestas linhas, abordarei apenas a comparação que tece entre o sentido de “inteligência” em relação a algoritmos artificiais (IA), e o sentido desse termo uma vez reportado ao ser humano. Respetivamente, nas secções II e III da Nota. Para apontar que o documento coloca as questões relevantes, mas que as desenvolve noutra pista que não a de uma justificação epistemologicamente legítima para as teses que se assumam. A primeira daquelas secções começa com a definição originária de J. McCarthy, em 1956, da IA como o que quer que faculte a uma máquina comportamentos que, se implementados por seres humanos, são classificados como inteligentes. Não sendo necessário que isso se processe do mesmo modo da inteligência humana. Os dois parágrafos...

Convergência das NBIC (II): “fusão”, “imersão”, “aumentação”

À entrada desta nova meia década, lançando também o segundo quartel deste século, lembrei aqui a grande conveniência de atendermos às oportunidades e riscos não apenas das nanotecnologias, biotecnologias, tecnologias informáticas e ciências cognitivas (NBIC) isoladas, mas da convergência entre elas. Em cujo processo, como também apontei, estão implicadas instituições minhotas. Nestas linhas agora focarei um dos complexos de questões que se colocam nesse âmbito: em que é que nos constituiremos, que modo de ser humano estaremos a implementar, por um lado, ao utilizarmos as NBIC? E que mundo vivido, por outro lado, estaremos igualmente a implementar assim? É em conformidade às respostas a essas questões que deveremos responder a estas outras: como poderemos lidar com essas novas tecnologias sem alienar a nossa condição humana? Ou esta última é apenas um facto com 300.000 anos, sem valor intrínseco que obste a um avanço decidido rumo ao transhumanismo * ? Aquelas primeiras questões de...

Convergência das NBIC (I): um desafio na nova metade da década

Depois de mais de 300.000 anos coletando os produtos da Natureza, há cerca de 12.000 anos deixámos de nos ajustar a esta última e passámos a ajustá-la a nós. Correspondentemente, deixámos de viver em pequenos bandos, com relações personalizadas, e criámos grandes sociedades com relações e instituições tendencial ou mesmo assumidamente formais. Até à segunda década deste século, quando firmámos um conjunto de processos sociotécnicos que eventualmente contribuirão para uma nova era nessa história. Em particular, com esta novidade de o Homo Sapiens perder a exclusividade, para algoritmos artificiais e com vantagem destes últimos, de alguns dos procedimentos que nos têm facultado o nosso poder único. No dobrar da metade desta terceira década, com o tempo histórico aparentemente em plena aceleração, dificilmente outro conjunto de questões nos merecerá mais atenção. Sobre a década anterior, refiro-me a acontecimentos como o Prémio Breakthrough de 2015, que distinguiu a tecnologia CRISPR-Cas9...

A reindustrialização e a tecnologia como vontade

Enquanto ainda se discute o Orçamento do Estado, sobre o financiamento e orientação de uma eventual reindustrialização e desenvolvimento tecnológico do nosso país, concordaremos que ou serão eminentemente comunitários, ou em boa parte nacionais, ou não se realizarão quaisquer dessas inovações que impliquem investimento. Em última análise, porém, a opção implica uma decisão no âmbito do que um autor já clássico, ainda que numa obra que cumpre agora o número redondo de trinta anos apenas, chamou a “tecnologia como volição”. Uma decisão também salientada, embora de forma mais simplificada, pelos recentes Nobel da economia Daron Acemoglu e Simon Johnson. No plano da modalidade de financiamento, dada a carta pública do nosso Primeiro-ministro à Presidente da Comissão Europeia, a opção portuguesa parece ser a comunitária. Tanto por um aumento das dotações nacionais para o orçamento da UE, quanto pela mutualização de dívida contraída pela Comissão Europeia. Com a França a ter duplicado nest...

De incêndios vários à decisão e prestação de contas

Desde os incêndios todos os verões até a decisão que demorou 50 anos sobre um novo aeroporto, parece bem termos um problema com as decisões em alternativas da nossa vida coletiva. (Que um dos nossos maiores entretenimentos televisivos sejam os infindáveis e em regra inconsequentes comentários de eventos políticos, é mais um sintoma desta dificuldade). Numa aproximação ao esclarecimento da estrutura desse problema, em particular quando as alternativas se abrem sobre equipamentos públicos, será útil atender a um outro incêndio: o que deflagrou no hospital público da ilha mais povoada dos Açores, São Miguel, em maio passado. A área de implantação desse complexo é tendencialmente retangular. Mas, apesar de o incêndio ter ocorrido apenas na secção onde se encontrava a central elétrica, todos os doentes foram evacuados e os serviços foram suspensos. Por sorte, a iniciativa privada construíra poucos anos antes um hospital de dimensões suficientes para acolher agora os doentes que não pud...

A escola e os conhecimentos práticos

Passado o verão, centenas de milhar de estudantes e professores, e indiretamente as respetivas famílias, aprestam-se a encetar mais um ano de aquisição/transmissão de conhecimentos e desenvolvimento de competências. Especialmente nos ensinos secundário e superior, cada uma dessas pessoas estará a orientar-se conforme uma distinção entre conhecimentos ditos “teóricos” e “práticos” (para simplificar, ignoremos aqui as competências). Aos teóricos, destinam-se principalmente o ensino secundário regular, muitos cursos universitários e bastantes “cadeiras” no ensino superior politécnico. Já a generalidade dos cursos deste último tipo de ensino, partes importantes de alguns cursos universitários (ex. engenharias ou medicina), e o ensino técnico profissional destinam-se principalmente aos conhecimentos práticos. Em conformidade a essa distinção, para que cada estudante, professor ou família de apoio melhor cumpra a respetiva orientação para uns ou outros currículos e tipos de escola, convé...

No verão, back to basics com D. Hume

E esta é a pista mais relevante que julgo Hume nos ter aberto, ainda que em poucas frases como as seguintes: “O grande subversor (…) dos princípios excessivos do ceticismo é a ação, o trabalho e as ocupações da vida comum”. David Hume (Edimburgo, 1711-1776) serviu a Coroa britânica na embaixada em Paris, cidade onde também ficaram famosas as suas noitadas com amigos. Ou seja, o homem era reconhecido como alguém capaz de aumentar a probabilidade de a vida correr bem, quer na dimensão pessoal e de socialização, quer na dimensão pública ou comum. Afigura-se-nos assim uma boa leitura para este próximo tempo de lazer, em que também podemos preparar mais um ano de vida. Inclusive pelo reduzido tamanho, e pela linguagem acessível, da obra que referirei adiante. Na dimensão pública, Hume esteve na origem do primeiro sistema monetário internacional – o padrão-ouro – com a sua contribuição para a Teoria Quantitativa da Moeda. No entanto, a herança mais relevante que nos deixou encontrar-se-á no ...

O mal está aqui

Fui ver O Mal Não Está Aqui , de Ryusuke Hamaguchi (2023), por uma pequena sucessão de coincidências mais a boa memória de um outro filme do mesmo realizador. As críticas são díspares. Mas, desde as suas primeiras cenas, me ocorreram passagens do diagnóstico e da terapia que Albert Borgmann propôs da nossa cultura e sociedade tão mediadas tecnologicamente. E assistir ao filme do realizador japonês, em diálogo com este filósofo (falecido fez agora um ano) de nascimento alemão mas adotivo do e adotado pelo Estado norte-americano de Montana, mais do que premiou a aposta. Designadamente, a cena, demorada, da recolha de água num riacho, agachando-se a pessoa junto a um pequeno desnível onde a água recém-degelada corre límpida, para a apanhar da poça num potezinho, com o cuidado de não levantar impurezas do fundo. Aos elementos desses contextos na floresta ou na cidade, bem como aos utensílios usados – ex. potes –, Borgmann chama “coisas” (ing. things ). Com as quais a pessoa se relaciona in...

EU AI Act (III) – O risco da abordagem baseada nos riscos

Em dezembro passado, o Parlamento e o Conselho Europeus inauguraram mundialmente a regulamentação da produção e implementação da Inteligência Artificial (IA). Ainda que a aplicação desse diploma seja progressiva. Como está expresso no website oficial da Comissão Europeia (CE, página “ AI Act ”), no desenho desse regulamento foi adotada uma abordagem baseada nos riscos da IA. Isto é, considerando o produto (multiplicação) do grau de prejuízo atribuído a certos resultados desses sistemas tecnológicos pela probabilidade de tais resultados ocorrerem – assim, se a probabilidade de uma certa ocorrência até for baixa, mas se considere enorme a gravidade desse resultado, o risco deste será alto. Este tipo de avaliação de tecnologias costuma fazer-se em três momentos: o reconhecimento ou estimativa (ing. assessment ) dos riscos, a avaliação ( evaluation ) destes últimos, e a sua gestão. Creio que o maior risco que corremos com essa abordagem se joga nas condições desse terceiro momento que ...