O pensamento técnico e o desafio português

Quando se fala em “tecnologia”, ocorrem-nos habitualmente objetos com utilidade prática – computadores, esferográficas… No entanto, aquele termo pode ser usado em outros sentidos. Um destes é o de uma forma de raciocínio – dito mais precisamente, “técnico” – e uma certa constituição dos conceitos como tais.

Raciocínios da forma “Se se pretende x, e y é um meio eficaz, acessível e melhor do que as alternativas para se obter x, faça-se y”. São raciocínios orientados por fins, e regulados por critérios de eficiência e oportunidade. Para o pensamento técnico, ou “instrumental”, que os implementa, conceitos como os que nomeiam aqueles objetos acima, ou hipotenusa, Portugal… não constituem representações de parcelas da realidade, e menos ainda nomes daquilo mesmo que há a considerar como real. Constituem antes ferramentas para a conceção do que se jogará em cada situação problemática, em vista da resolução destas últimas. Servem, pois, para organizar a experiência e orientar a ação.

Prof. C. Quigley
Nada será mais oportuno, ou mesmo necessário, face à perturbação associada à integração social da IA e emergência da indústria 5.0 – com colaboração entre agentes humanos e artificiais –, ou à atual (des)ordem internacional. A eficiência de um pensamento técnico na atual circunstância histórica, porém, requer uma seleção cuidadosa das ferramentas concetuais a utilizar. Para o que me ocorre a noção de “instrumento de expansão” civilizacional, da autoria do influente académico americano Carroll Quigley.

A sua seleção pressupõe a utilização da ferramenta “civilização”, na sua dupla fórmula: como modo de organização social que conta com instituições formais (ex. do exercício dos poderes políticos), e que intervém tecnologicamente na natureza – patente na frase “A vida civilizada contrapõe-se à vida natural ou selvagem”. E como complexos de tais organizações, distinguidos por princípios, valores e práticas típicas, que se designam “culturais” – patente nos nomes “civilização Ocidental”, “civilização Sínica”… Me parece que a seleção prévia desta ferramenta concetual se justifica, por um lado, pelo reconhecimento da constituição de tradições que modalizam essa vida civilizada conforme desenvolvem complexos de fatores culturais dominantes, distintos uns complexos dos outros. Pelo outro lado, quando se verificam fenómenos interpretáveis como sinais de turbulência, quando não mesmo já de decadência, em espaços habitados concebíveis como tais civilizações – é o caso dos fenómenos contemporâneos acima apontados.

Uma vez adotada essa abordagem civilizacional, podemos ponderar a utilização da ferramenta “instrumento de expansão”. O referido historiador designa assim as organizações sociais que cumprem três objetivos: i) incentivar a invenção de novas maneiras de fazer as coisas; ii) acumular recursos que possam vir a ser investidos; e iii) alocar este excedente no desenvolvimento e implementação daquelas invenções. Quando as instituições de uma organização social passam a visar manter-se indiferentemente de não cumprirem estes objetivos, gera-se maior violência, piores condições de vida para a maioria da população, e eventualmente uma decadência civilizacional (o oposto do x pretendido na fórmula inicial).

Nesse quadro, acrescentemos que cada país da civilização terá de desenhar (o y naquela fórmula) instituições de segurança, justiça, económico-financeiras, laborais, sociais e educacionais – na constituição do dito “instrumento” – que respeitem quer os traços culturais nacionais, quer os traços culturais civilizacionais comuns.

Entre nós, esta ferramenta concetual afigura-se particularmente relevante logo para a identificação e o equacionamento do desafio português face a perturbações como as aqui consideradas. Uma vez que o nome “Portugal” designa, entre outras coisas, um exemplo da possibilidade de uma pequena parcela de uma civilização se distinguir tanto na inovação de um instrumento de expansão – Quigley: o capitalismo comercial, a meados do séc. XV –, quanto na ossificação desse último – o mercantilismo de Estado.

O pensamento técnico é hoje, pois, particularmente oportuno na nossa governação coletiva. Com uma identificação da missão do novo executivo, e das bancadas, no parlamento, que se constituam como ocidentais, como a do apoio ao país em alguma participação no novo instrumento de expansão que, esperemos, o Ocidente será capaz de gerar neste momento histórico. Em vez de restarmos na ossificação do instrumento com que respondemos a problemas ultrapassados.

Já a realização dessa participação, para aquém das instituições políticas, cabe-nos a nós nas nossas vidas familiares, profissionais, sociais…semana após semana.


in Tek notícias - Opinião, 07/08/2025

2.º quartel do séc. XXI – que significado para “tecnologia”?

Para orientarmos esta vinda à leitura desta página digital, precisaremos apenas de algum conceito como “computador”. Não precisamos de qualquer conceito englobante, como “tecnologia”. Em cada ação, bastam-nos os conceitos que a orientam com sucesso.

Isso não significa que, mesmo em ações com interesses que se não reduzem ao próprio processo (i.e. mesmo em ações com objetivos práticos a atingir), devamos evitar o uso desses termos englobantes. Seguindo o exemplo dado, quando nos encontramos numa ação não como ler alguma página digital ou impressa concreta, mas de providenciar condições para as ações anteriores – ex. a promoção de literacia tecnológica –, facilitará não só a comunicação com os interlocutores, mas mesmo o pensamento prático que nos orienta, assumir um significado vago de “tecnologia” como nome de um conjunto, mal determinado, de coisas que, em cada ato de comunicação, pareça que nós, esses nossos interlocutores e eventuais terceiros admitimos reunir ali. Usamos então o termo, dispensando o respetivo esclarecimento.

É certo que alguns de nós se podem dedicar a esses esclarecimentos. Mas, normalmente, isso é inconsequente. Quem então se lhes dedique, estará a desenvolver um comportamento meramente estético ou lúdico. Afinal, cada qual aprecia ou diverte-se a seu gosto.

Em algumas circunstâncias históricas, porém, tais esclarecimentos não serão apenas estéticos ou lúdicos. Assim se me afigura o caso de “tecnologia”, nesta passagem do 1.º para o 2.º quartel do século atual. Dada a inovação (introdução de tecnologias nas práticas sociais) particularmente das NBIC – nanotecnologias, biotecnologias, tecnologias informáticas incluindo a robótica, ciências cognitivas incluindo o conhecimento sobre IA – e não só de forma isolada, mas ainda mais em convergência umas com as outras.

Tomemos um exemplo em vias de se ter de discutir para cá da ficção científica: um robô social poderá ser sujeito (não apenas objeto) de direitos? – quem julgue que tal ideia ainda só terá lugar na mais exotérica das ficções, atente às recentes notícias sobre “bebés reborn” e o que algumas suas “mamãs” reivindicam para eles. Ou consideremos os xenobots: máquinas construídas com tecidos vivos, as quais inclusive, em convergência com a IA, já se reproduzem por algumas gerações, e com as quais nos associamos quando (por terem menos de 1mm. de espessura) as fazemos evoluir no nosso sistema circulatório, talvez sejam candidatas mais fortes a tais direitos do que robôs sociais. Afinal, estão mais perto do estatuto animal ao qual, há poucas décadas, começámos a aceitar outorgar alguns direitos.

Essa questão joga-se na articulação entre a velha questão básica de como se outorgam quaisquer direitos, e a questão (também básica ainda que esquecida por longos períodos) da determinação exata do conjunto “tecnologia”.

Designadamente, entidades como as acima mencionadas, pertencem a esse conjunto? Sabê-lo-emos ao lhes aplicar o critério da pertinência a este último, mas qual é esse critério?

Ou deveremos antes constituir diversos conjuntos ditos “tecnológicos”, que apenas se intersectem, sem talvez sequer qualquer subconjunto comum a todos eles? Por exemplo, a intersecção entre os conjuntos dos artefactos técnicos e de tudo o que é objeto de direitos (e.g. de autor), dos quais (artefactos) bastantes mas porventura não todos também pertençam ao conjunto das coisas passíveis de um conhecimento propriamente tecnológico, coisas estas talvez nem todas elementos do conjunto “artefactos técnicos”… Assim, orientaremos as nossas ações consoante o conjunto com que de cada vez lidemos. Mas será que esta desmultiplicação de critérios de pertinência facilita a aplicação de cada um deles?

Ou ainda, talvez o conceito “tecnologia” seja aberto, estendendo-se progressivamente a novos objetos (como os xenobots). Mas de que dependerá, em cada evolução histórica, a nova determinação dos limites do conjunto “tecnologias”?

Ao arrepio do que talvez seja a normalidade histórica, na nossa circunstância atual a determinação de “tecnologia” – ou das condições de utilização deste nome – justificar-se-á, que mais não seja, segundo a racionalidade económica: um investimento de energia e tempo, na complicação da determinação de um horizonte com que poderíamos lidar com maior simplicidade, é certo, mas em vista de uma mais produtiva e mais segura exploração das estranhas pistas, ditas “tecnológicas”, que nos temos estado a abrir.


in SAPO Tek - Opinião, 25/06/2025

Antiqua et Nova: as inteligências humana e artificial

A 28 de janeiro passado, a Igreja Católica publicou a Nota referida no título acima. Da autoria de dois Dicastérios, um dos quais, por sinal, tem como Prefeito o Cardeal português Tolentino Mendonça. O documento é rico e sugestivo a diversos títulos, mas, nestas linhas, abordarei apenas a comparação que tece entre o sentido de “inteligência” em relação a algoritmos artificiais (IA), e o sentido desse termo uma vez reportado ao ser humano. Respetivamente, nas secções II e III da Nota. Para apontar que o documento coloca as questões relevantes, mas que as desenvolve noutra pista que não a de uma justificação epistemologicamente legítima para as teses que se assumam.

A primeira daquelas secções começa com a definição originária de J. McCarthy, em 1956, da IA como o que quer que faculte a uma máquina comportamentos que, se implementados por seres humanos, são classificados como inteligentes. Não sendo necessário que isso se processe do mesmo modo da inteligência humana.

Os dois parágrafos seguintes (8 e 9) apontam a especificidade dos atuais algoritmos no desempenho de cada função “inteligente” – ex. tradução linguística, resposta a questões verbais, classificação de imagens… E destacam a IA com capacidade de aprendizagem.

A este propósito, lembremos o ensaio com grande impacto internacional do investigador português Pedro Domingos, já há uma década, sobre a diversidade lógica dessas famílias de algoritmos. Este autor apelou então ao desenho de um “Algoritmo Mestre” que, como a inteligência natural mas não como as atuais inteligências artificiais, consiga reunir as diversas competências próprias a cada uma dessas outras. A recente Nota do Vaticano releva precisamente esse projeto de uma IA geral. Assinalando que alguns anteveem que ela ultrapassará a nossa inteligência natural, pelo que outros alertam para os seus perigos.

Como, porém, esclarece o parágrafo 10, a utilização unívoca do termo “inteligência” – i.e. designando as mesmas faculdades em seres humanos e em algoritmos – implica uma conceção funcionalista se não dos processos mentais em geral, ao menos dos designados por aquele nome. E o parágrafo 11 põe o dedo na ferida: “in the case of AI, the ‘intelligence’ of a system is (…) based on its ability to produce appropriate responses (…) regardless of how those responses are generated”.

Sigamos brevemente esta pista apontada na Antiqua et Nova, mas no modo como tem sido trabalhada pelas ciências cognitivas, desde a filosofia da mente às neurociências e à reflexão no seio da IA. O funcionalismo é a corrente de pensamento sobre os fenómenos mentais que os assume como funções que traduzem certos inputs observáveis, nomeadamente sensíveis, em outputs também observáveis, nomeadamente comportamentais. Num exemplo clássico, a dor traduz, digamos, uma picada de agulha no súbito afastamento da mão.

Esta abordagem aos processos mentais tem duas vantagens: uma, é que se estriba em fenómenos observáveis, designadamente, os estímulos sensoriais e os comportamentos ulteriores. A outra é que, ao assumir os segundos como consequências dos primeiros, salvaguarda a consideração de processos mentais – em si mesmos inobserváveis além das discutíveis introspeções (pelo que a psicologia comportamentalista não tinha recursos para os considerar) – como as então necessárias mediações entre aqueles momentos iniciais e finais.

Os próprios funcionalistas, porém, cedo reconheceram um problema: este esquema concetual não parece dar conta das experiências subjetivas e, muito especialmente, da consciência.

Por exemplo, se a uma picada e a uma queimadura se seguem semelhantes desvios rápidos do corpo, os sujeitos testemunham porém que as experiências dolorosas não são qualitativamente idênticas num caso e noutro. Ora, a mera tradução daqueles inputs nesse mesmo comportamento não permite conceber uma diferença qualitativa.

E depois vem o que David Chalmers celebremente designou por “the hard problem”: a consciência. Ou seja, a explicação desde logo do desdobramento do sujeito humano sobre si próprio, na noção que cada um de nós tem de si a ter quaisquer experiências e comportamentos. Muitas pessoas pretendem ainda desenvolver o conceito de “consciência” com a inclusão da capacidade de ponderar alternativas, decidir entre estas e causar o comportamento correspondente. Este sentido forte de consciência (com “livre-arbítrio”) é discutível, mas, pelo menos naquele sentido fraco (“sentimento de si”), parece impor-se a consideração de uma consciência. Que o esquema funcionalista dificilmente facultará, gerando apenas uma conceção nossa quais zombies.

Nesta situação, os contributos funcionalistas parecem constituir-se como necessários mas não suficientes para uma conceção justificada da mente, e assim da inteligência. Necessários, se se pretende alguma justificação empírica. Insuficientes, se se incluem as experiências subjetivas e a consciência entre os fenómenos mentais a explicar.

Essa discussão, com sustentação empírica e lógica, sobre a necessidade e a suficiência de qualquer proposta de conceção integral da mente está em curso nas referidas ciências cognitivas. Voltando à Antiqua et Nova, a sua secção III, porém, evolui antes numa dissertação sobre a distinção concetual, na tradição ocidental, entre intelecto e razão. Avançando também o postulado de (literalmente: pedido que se aceite) uma imbricação entre as nossas faculdades mentais, incluindo as emocionais, e a nossa corporeidade.

Sobre a temática da mente, portanto, esta Nota do Vaticano tem o mérito de a equacionar certeiramente no valor do esquema funcionalista. Mas, para uma abordagem crítica que enjeite quaisquer bases dogmáticas, interessará apenas como um lembrete de velhos recursos concetuais – “razão”, “intelecto” e “corpo” – eventualmente a empregar nesta abordagem.

Por outro lado, se se presumir a doutrina cristã sobre a constituição do ser humano, dispensando a justificação acima referida, a leitura desse texto tem certamente a virtualidade de formalizar ou dar corpo às intuições do leitor (que presuma aquela doutrina) nesta questão maior dos nossos tempos, que é a da emergente relação entre a nossa inteligência natural e as inteligências artificiais que estamos começando a utilizar em larga escala.

in Correio do Minho (ed. impressa), 03/03/2025

Convergência das NBIC (II): “fusão”, “imersão”, “aumentação”

À entrada desta nova meia década, lançando também o segundo quartel deste século, lembrei aqui a grande conveniência de atendermos às oportunidades e riscos não apenas das nanotecnologias, biotecnologias, tecnologias informáticas e ciências cognitivas (NBIC) isoladas, mas da convergência entre elas. Em cujo processo, como também apontei, estão implicadas instituições minhotas. Nestas linhas agora focarei um dos complexos de questões que se colocam nesse âmbito: em que é que nos constituiremos, que modo de ser humano estaremos a implementar, por um lado, ao utilizarmos as NBIC? E que mundo vivido, por outro lado, estaremos igualmente a implementar assim?

É em conformidade às respostas a essas questões que deveremos responder a estas outras: como poderemos lidar com essas novas tecnologias sem alienar a nossa condição humana? Ou esta última é apenas um facto com 300.000 anos, sem valor intrínseco que obste a um avanço decidido rumo ao transhumanismo*?

Aquelas primeiras questões decorrem do reconhecimento da função mediadora das tecnologias. Concretamente, a utilização de uma dada tecnologia tanto implementa, por assim dizer, a jusante, o mundo então intervencionado, quanto, a montante dessa utilização, implementa o modo de ser correspondente a esse modo de agir.

Por exemplo, há alguns anos dois comandantes de aviação disseram-me preferir operacionalizar um Boing ao modelo equivalente da Airbus. Justificaram-se por, no primeiro caso, serem eles a pilotar o avião, ao passo que, no segundo, apenas complementavam uma pilotagem pelo próprio aparelho. Os dois designs técnicos, a jusante equivalentes, constituíam diferentes agentes a montante da utilização. Ou outro exemplo mais comezinho: muitos de nós, que aprendemos a executar em papel e lápis o algoritmo da radiciação, torcemos o nariz ao modelo de utilizadores da matemática para quem a expressão “achar a raiz quadrada” significa apenas (o problema está neste advérbio) uma determinada sequência de pressões em botõezinhos com certos ícones em cima. Apesar de não querermos prescindir dos ganhos económicos (em tempo, energia…) a jusante da utilização habitual das calculadoras.

Estendamos essa função mediadora das tecnologias tradicionais, desde o papel e lápis e o mencionado modelo da Boing – os pragmáticos, como eu, tendemos a também incluir nessa antiga classe as estruturas matemáticas, como a radiciação – às NBIC. Que um avião, com IA (incluída nas ciências cognitivas) que lhe faculte uma pilotagem tendencialmente autónoma, já exemplifica.

P.-P. Verbeek
Para analisarmos e compreendermos essa extensão, creio  nos serem particularmente úteis três noções – ou pragmaticamente: ferramentas teóricas – formuladas pelo filósofo neerlandês Peter-Paul Verbeek. Designadamente, as mediações realizadas por tecnologias fundidas nos agentes, por tecnologias imersas no mundo da ação, e por tecnologias que aumentam escalas nessa realidade.

Tome-se o caso de globos oculares artificiais que são implantados em vítimas de acidentes. Por um lado, esses artefactos não são apenas utilizados pontualmente quase sem perceção deles, como um par de óculos. Antes, eles fundem-se com o utilizador, tornam-se parte constante deste na sua ação, nomeadamente visual, ainda que não interajam bioquimicamente como os órgãos naturais do organismo onde são colocados. A utilização de tais artefactos transforma, a seu montante, um espécime natural de Homo Sapiens cego num ciborgue que vê.

Por outro lado, a realidade vista por esse ciborgue pode já não ter uma só escala de focagem, como a visão natural, mas ser aumentada em correspondência a uma multiplicação dessas escalas. Isto é, os globos oculares artificiais podem ser desenhados de forma a poderem focar tanto o copo, em cima da mesa da esplanada, ao alcance da mão, quanto a matrícula de um carro na mesma direção do olhar mas a muitos quilómetros, ou quanto as bactérias que se encontrem na beira do copo. O utilizador escolhe em que escala a realidade lhe aparecerá de cada vez, o que os nossos sistemas visuais naturais não nos facultam.

Imagine-se, ainda, que é inverno, a esplanada fica numa tão bela quanto ventosa praia, mas nem por isso quem não aprecia o fresco deixará de se demorar confortavelmente aí sentado. Por na esplanada estarem imersas tecnologias de medição da temperatura, humidade e vento, de contraste dos valores medidos com os padrões do conforto humano, porventura também tecnologias de reconhecimento de expressões faciais e verbais dos utentes friorentos, mais a que ordene um robô aquecedor a deslocar-se até à mesa, e a perguntar, na língua dos utentes, pela temperatura e ventilação que mais lhes agrade. Enquanto, fora da esplanada, se registam menos dez graus centígrados do que junto àquela mesa.

Será em relação aos resultados, a montante e a jusante, dessas mediações por fusão, aumentação e imersão que precisamos de responder àquele segundo complexo de questões: como poderemos lidar com elas sem nos alienarmos? Há sequer algum valor no Homo Sapiens que se deva não perder ou alienar contra os projetos transhumanistas? Se sim, qual exatamente?

A pergunta pelo ser humano é fundamental desde os alvores das civilizações Clássica, Islâmica, Ocidental… Mas, com a crescente implementação das NBIC mormente quando em convergência, tornou-se também sociotecnicamente urgente.


* O transhumanismo é uma corrente de pensamento que promove a intervenção tecnológica sobre os espécimes Sapiens, na produção artificial, por parte desses últimos, do que porventura constituirá já outra espécie do género Homo.


adaptado de Correio do Minho (ed. impressa), 08/02/2025

Convergência das NBIC (I): um desafio na nova metade da década

Depois de mais de 300.000 anos coletando os produtos da Natureza, há cerca de 12.000 anos deixámos de nos ajustar a esta última e passámos a ajustá-la a nós. Correspondentemente, deixámos de viver em pequenos bandos, com relações personalizadas, e criámos grandes sociedades com relações e instituições tendencial ou mesmo assumidamente formais.

Até à segunda década deste século, quando firmámos um conjunto de processos sociotécnicos que eventualmente contribuirão para uma nova era nessa história. Em particular, com esta novidade de o Homo Sapiens perder a exclusividade, para algoritmos artificiais e com vantagem destes últimos, de alguns dos procedimentos que nos têm facultado o nosso poder único. No dobrar da metade desta terceira década, com o tempo histórico aparentemente em plena aceleração, dificilmente outro conjunto de questões nos merecerá mais atenção.

Na década anterior, refiro-me a acontecimentos como o Prémio Breakthrough de 2015, que distinguiu a tecnologia CRISPR-Cas9. A qual (apesar do nome impronunciável) facilitou a edição do ADN – concretamente, a substituição de um segmento genético por outro que se julgue mais funcional ou melhor. E como, um ano depois, a vitória do programa inteligente AlphaGo sobre o campeão mundial do go – milenar jogo chinês, que colocou à IA o desafio de reconhecer e reagir a padrões, como faz a intuição humana –, contribuindo para o despertar da IA do “inverno” em que se encontrava.

nanobiotecnologias
Mas esses saltos das biotecnologias (B) e das ciências cognitivas (C, com inclusão da IA) têm podido potenciar, e ser potenciados, por desenvolvimentos entretanto em curso das nanotecnologias (N) – que produzem artefactos de dimensões da ordem de 1m. a dividir por mil milhões – e das tecnologias informáticas (I, com inclusão da robótica).

Ou seja, além das oportunidades e riscos de cada uma destas NBIC, a convergência entre elas poderá criar sinergias com resultados substancialmente diferentes do que conhecemos e fazemos desde o Neolítico.

Por exemplo, as nanobiotecnologias podem produzir biomateriais para a manufatura de pele artificial; nanorrobôs a injetar diretamente em tumores para matarem as células desses últimos; nanopartículas que se infiltrem no núcleo celular de quaisquer seres vivos e interfiram com os respetivos ADN…

As oportunidades são espantosas. Os riscos, porventura, ainda o são mais. Pela minha parte, confesso ter dificuldade sequer em imaginar o que a edição genética, nanochips para implantes intracranianos e a robótica, em convergências alavancadas por IA, poderão facultar na produção de ciborgues. O que nanopartículas como as acima referidas poderão eventualmente provocar uma vez que sejam largadas na natureza. Etc.

Tudo isso tanto nos coloca a questão ética da orientação do design, produção, utilização, manutenção e deposição de tais artefactos técnicos, quanto a questão antropológica do efeito dessas novas tecnologias no modo humano de ser. Voltarei a esta última questão na próxima oportunidade.

Entretanto, é de assinalar que esse processo complexo poderá ter expressão significativa aqui no Minho. Nomeadamente, através do INL – International Iberian Nanotechnology Laboratory. Onde, entre outras pesquisas, se trabalha a convergência entre dispositivos de nano dimensão e as interações entre a luz e sistemas biológicos. Ou, em geral, com a Estratégia de Especialização Inteligente da Eurorregião Galiza – Norte de Portugal (RIS3T). Em particular, na área de cooperação estratégica sobre a indústria 4.0 – ou IV Revolução Industrial, caraterizada pela articulação entre sistemas de produção físicos e virtuais.

Pesquisas como aquela no INL em nanobiotecnologias, e cooperações estratégicas como a RIS3T, facilmente terão tração e alavancarão o contexto produtivo do Norte do país. Caraterizado pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte, na década 2011-21, pela diversidade das bases tecnológicas das principais fileiras exportadoras de bens, com maior crescimento relativo daquelas com mais incorporação tecnológica. E pela pujança que transparece no facto de o Norte ter mantido a sua balança comercial de bens com valores positivos (ao contrário do país).

Na passagem do primeiro para o segundo quartel deste século, bem parece que devemos atender às oportunidades e riscos facultados pela convergência dessas novas tecnologias.


in: Correio do Minho (ed. impressa), 02/01/2025

A reindustrialização e a tecnologia como vontade

Enquanto ainda se discute o Orçamento do Estado, sobre o financiamento e orientação de uma eventual reindustrialização e desenvolvimento tecnológico do nosso país, concordaremos que ou serão eminentemente comunitários, ou em boa parte nacionais, ou não se realizarão quaisquer dessas inovações que impliquem investimento. Em última análise, porém, a opção sobre esse financiamento e orientação implica uma decisão no âmbito do que um autor já clássico, ainda que numa obra que cumpre agora o número redondo de trinta anos apenas, chamou a “tecnologia como volição”. Uma decisão também salientada, embora de forma mais simplificada, pelos recentes Nobel da economia Daron Acemoglu e Simon Johnson.

No plano da modalidade de financiamento, dada a carta pública do nosso Primeiro-ministro à Presidente da Comissão Europeia, a opção portuguesa parece ser a comunitária. Tanto por um aumento das dotações nacionais para o orçamento da UE, quanto pela mutualização de dívida contraída pela Comissão Europeia. Com a França a ter duplicado neste século a sua dívida pública em percentagem do PIB, caberá aos germânicos, flamengos, escandinavos… optar entre ou empenhar os seus recursos e créditos nessa modalidade, ou quebrar a solidariedade europeia, ou quebrar a própria União Europeia. Esses eleitorados terão a palavra.

Se esta palavra for positiva, a orientação da tecnologia – tanto quanto dependa das instituições comunitárias – por certo será a que eles aceitarem.

Se for negativa, caberá aos portugueses, gregos… escolher entre contar com os respetivos créditos e poupanças pública ou privada, e orientar alguma parte do referido desenvolvimento, ou desistir deste processo.

Admitamos a conveniência desse último. Assim, tanto quem se disponha a esticar a corda nórdica e centro-europeia, e admita que o nosso país delegue a orientação da tecnologia que viveremos, quanto quem assuma de imediato a necessidade de maior poupança nacional a investir naquele desenvolvimento, e se confronte com a orientação desse investimento no que dependa de opções nacionais – ex. redes de transportes, de abastecimento de água… – coloca-se na dimensão volitiva da tecnologia.

Carl Mitcham (n. 1941)
Conforme o clássico esquema proposto por Carl Mitcham (1994), nessa dimensão decide-se a implementação do conhecimento propriamente tecnológico – por exemplo, o saber-fazer que orienta o design específico de um “rato” de computador. Ambos, vontade e conhecimento, concorrem para a manifestação da tecnologia como atividade – desde a produção de computadores e de papel até a utilização de tais instrumentos na escrita e leitura destas palavras. A qual (atividade) visa, enfim, os objetos tecnológicos – como jornais, impressos ou digitais.

Mas, na manifestação da tecnologia como volição, esse historiador das ideias sobre o fenómeno tecnológico, entre outras questões, salienta que se podem desenvolver tecnologias diferentes conforme a determinação da vontade que estas expressam e servem.

Nomeadamente, implementação da tecnologia como: vontade de satisfação de necessidades biológicas (Spengler) – faculta diversas tecnologias, artesanais ou científicas, orientadas pelas condições de vida. Vontade de eficiência (Skolimowski) – implementando o conhecimento não do que é (ciência), mas do que deve continuar ou vir a ser, o que implica juízos de valor coletivos. Vontade de controlo ou de poder (Mumford) – que substitui tecnologias orientadas por diversos interesses vitais e/ou éticos por tecnologias que sirvam este outro grande propósito. Vontade de liberdade dos constrangimentos naturais (Walker) – o que pode legitimar tecnologias desenvolvidas pelo propósito anterior. No que será uma especificação dessas últimas três vontades que caraterizariam a tecnologia Moderna, a vontade ainda de destruir o que é dado, para se reconstruir o mundo conforme a mundivisão dos agentes da produção, ou de alguém que se sirva deles (Ortega).

Mitcham aponta outras abordagens relacionadas a essas. Entre as quais, neste tempo de nano, neuro e biotecnologias que abrem o horizonte ciborgue, vale a pena lembrar a de Jean Brun: a tecnologia como meio da vontade, recorrente na tradição Ocidental, de ultrapassar a cisão entre sujeito (mente, cultura) e objeto (corpo, natureza), numa autocriação, objetivante, do sujeito.

Como aquele historiador e filósofo americano acentua em síntese, o que importa termos presente é que qualquer dessas conceções da tecnologia decorre da conceção que fazemos daquilo que somos e do que devemos ser.

É nesse horizonte que se compreende a presente reivindicação por Acemoglu e Johnson de uma tecnologia que sirva e apenas complemente os seres humanos, ao invés de nos substituir ou até nos usar como seus complementos. Ainda para mais, em pleno novo surto da inteligência artificial, face ao poder que a ínfima minoria que controle esses algoritmos se afigura poder alcançar sobre a enorme maioria da humanidade.

Com as respostas a essas e outras questões correlacionadas, de uma maneira ou de outra, já em curso, parecem acertadas as palavras do nosso PM: “há mais vida para além do Orçamento”. A começar pelo enfrentamento de tais questões, em vista a uma decisão ponderada das respostas civilizacionais que nos estamos pondo a viver.


in (adaptado): Correio do Minho (ed. impressa), 18/11/2024

De incêndios vários à decisão e prestação de contas

Desde os incêndios todos os verões até a decisão que demorou 50 anos sobre um novo aeroporto, parece bem termos um problema com as decisões em alternativas da nossa vida coletiva. (Que um dos nossos maiores entretenimentos televisivos sejam os infindáveis e em regra inconsequentes comentários de eventos políticos, é mais um sintoma desta dificuldade).

Numa aproximação ao esclarecimento da estrutura desse problema, em particular quando as alternativas se abrem sobre equipamentos públicos, será útil atender a um outro incêndio: o que deflagrou no hospital público da ilha mais povoada dos Açores, São Miguel, em maio passado.

A área de implantação desse complexo é tendencialmente retangular. Mas, apesar de o incêndio ter ocorrido apenas na secção onde se encontrava a central elétrica, todos os doentes foram evacuados e os serviços foram suspensos. Por sorte, a iniciativa privada construíra poucos anos antes um hospital de dimensões suficientes para acolher agora os doentes que não pudessem cruzar o mar.

As primeiras explicações avançadas para essa suspensão geral apontaram para a destruição dos sistemas elétrico e de ventilação. Entretanto, são dadas informações semioficiais de que o edifício, construído há cerca de 25 anos, não tinha celagens contra-fogo… O que nos traz à questão da decisão técnica.

Além de especificidades como essa, aos donos desse equipamento público, isto é, aos contribuintes que o pagam (além dos alemães, holandeses… que tenho ideia de o terem subsidiado), e que, como eleitores, mandatam os respetivos responsáveis diretos, em ordem aos utilizadores que aqueles primeiros também são, legitimamente ocorrerão outras questões leigas a que os subordinados desses donos – os técnicos e os políticos – devem resposta.

Por exemplo, não faria sentido e não era tecnicamente possível, há 25 anos ou em alguma melhoria posterior, a instalação de redundâncias, pelo menos em partes do sistema elétrico? De forma que, estragando-se uma parte, outra pudesse assumir rapidamente as funções da anterior, ainda que pela acoplagem de algum equipamento móvel. Há muito que os aviões têm sistemas redundantes de controlo de ailerons e estabilizadores…

O mesmo em relação, por hipótese, a uma modulação do sistema de ventilação. De forma que, contaminando-se uma área do hospital, esta fosse isolada das restantes. Há mais tempo ainda do que a construção aeronáutica, a construção naval implementa isso nos compartimentos inferiores de navios…

A resposta dos técnicos, devidamente justificada, talvez seja que nem essas hipóteses nem outras equivalentes fariam sentido, ou que não eram possíveis à data, e que depois se tornariam praticamente inviáveis. Vou admitir. Mas, a bem da reflexão geral, suponhamos que alguma delas faria sentido prático, teria sido possível, mas que terá sido enjeitada.

Neste caso, a questão incide na justificação dessa decisão.

Suponhamos também – porque provável – que a implementação de tais medidas encarecesse a construção e manutenção do equipamento. Assim, a decisão terá sido entre, por um lado, apostar na pequena probabilidade de incêndio (ou acidente equivalente), e reduzir o custo financeiro bem como a exigência de competências laborais alocadas a esse hospital; ou, por outro lado, valorizar a gravidade dos possíveis acidentes, e desviar para ali verbas e competências de outros setores públicos – nos quais se pagaria, então, o preço da melhoria do anterior.

(Também nunca é impossível que membros de algum gangue ocupem órgãos do Estado, para desviarem fundos públicos para a contratualização de serviços controlados pelo gangue. Mas deixemos esta possibilidade ao cuidado da Polícia Judiciária e Ministério Público).

Em suma, aquela decisão não terá sido estritamente técnica, antes terá radicado numa decisão política. Dependendo ultimamente da hierarquia de valores que o decisor terá assumido.

O que nos traz de volta aos donos dos equipamentos públicos e mandantes de quem os gere. Nós. Que temos o direito de pedir contas a quem toma essas decisões. E os nossos representantes não têm senão o dever de no-las prestar, e de um modo que leigos, com algum esforço, as compreendam. Para que as devidas ilações práticas sejam retiradas – este é o cerne da questão.

Mas também nos cabe pedir contas a nós próprios, e delas tirarmos ilações práticas. Relativamente à disposição, ou falta dela, de nos esforçarmos para compreender aquelas prestações informais de contas técnicas. À nossa exigência, ou falta dela, de as recebermos em devido tempo. De esclarecermos connosco próprios as nossas hierarquias de valores, e de elegermos quem assume claramente a nossa, ou de fazermos o contrário disso. Inclusive, se houver razões para nos julgarmos suficientemente competentes para desempenhar certas funções públicas conforme esses nossos valores, e não se vislumbrar mais quem o faça, de nos disponibilizarmos, ou não, para as desempenhar (ainda que, pela minha parte, só a ideia de se ter de participar nos círculos que se cruzam com aqueles shows televisivos seja suficiente para desculpar quem arrepie este caminho).

É conhecida a frase (que não será de Einstein) de que insanidade é repetir o mesmo comportamento esperando obter resultados diferentes. Na verdade, ela é algo ambígua e poderá ser falsa por vezes. Mas, no arco que vai desde a construção de grandes equipamentos ou do ordenamento do território, até o mau funcionamento disso tudo ou mesmo a sua destruição em incêndios, será de a ter presente enquanto não normalizarmos essa prestação de contas pessoais, políticas e técnicas. 


Correio do Minho (ed. impressa), 01/10/2024

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