À entrada desta nova meia década, lançando também o segundo quartel deste século, lembrei aqui a grande conveniência de atendermos às oportunidades e riscos não apenas das nanotecnologias, biotecnologias, tecnologias informáticas e ciências cognitivas (NBIC) isoladas, mas da convergência entre elas. Em cujo processo, como também apontei, estão implicadas instituições minhotas. Nestas linhas agora focarei um dos complexos de questões que se colocam nesse âmbito: em que é que nos constituiremos, que modo de ser humano estaremos a implementar, por um lado, ao utilizarmos as NBIC? E que mundo vivido, por outro lado, estaremos igualmente a implementar assim?
É em conformidade às respostas a essas questões que
deveremos responder a estas outras: como poderemos lidar com essas novas
tecnologias sem alienar a nossa condição humana? Ou esta última é apenas um
facto com 300.000 anos, sem valor intrínseco que obste a um avanço decidido
rumo ao transhumanismo*?
Aquelas primeiras questões decorrem do
reconhecimento da função mediadora das tecnologias. Concretamente, a utilização
de uma dada tecnologia tanto implementa, por assim dizer, a jusante, o mundo então
intervencionado, quanto, a montante dessa utilização, implementa o modo de ser
correspondente a esse modo de agir.
Por exemplo, há alguns anos dois comandantes de
aviação disseram-me preferir operacionalizar um Boing ao modelo equivalente da
Airbus. Justificaram-se por, no primeiro caso, serem eles a pilotar o avião, ao
passo que, no segundo, apenas complementavam uma pilotagem pelo próprio
aparelho. Os dois designs técnicos, a jusante equivalentes, constituíam
diferentes agentes a montante da utilização. Ou outro exemplo mais comezinho:
muitos de nós, que aprendemos a executar em papel e lápis o algoritmo da
radiciação, torcemos o nariz ao modelo de utilizadores da matemática para quem
a expressão “achar a raiz quadrada” significa apenas (o problema está neste
advérbio) uma determinada sequência de pressões em botõezinhos com certos
ícones em cima. Apesar de não querermos prescindir dos ganhos económicos (em
tempo, energia…) a jusante da utilização habitual das calculadoras.
Estendamos essa função mediadora das tecnologias tradicionais, desde o papel e lápis e o mencionado modelo da Boing – os pragmáticos, como eu, tendemos a também incluir nessa antiga classe as estruturas matemáticas, como a radiciação – às NBIC. Que um avião, com IA (incluída nas ciências cognitivas) que lhe faculte uma pilotagem tendencialmente autónoma, já exemplifica.
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P.-P. Verbeek |
Tome-se o caso de globos oculares artificiais que
são implantados em vítimas de acidentes. Por um lado, esses artefactos não são
apenas utilizados pontualmente quase sem perceção deles, como um par de óculos.
Antes, eles fundem-se com o utilizador, tornam-se parte constante deste na sua
ação, nomeadamente visual, ainda que não interajam bioquimicamente como os
órgãos naturais do organismo onde são colocados. A utilização de tais
artefactos transforma, a seu montante, um espécime natural de Homo Sapiens cego
num ciborgue que vê.
Por outro lado, a realidade vista por esse
ciborgue pode já não ter uma só escala de focagem, como a visão natural, mas
ser aumentada em correspondência a uma multiplicação dessas escalas. Isto é, os
globos oculares artificiais podem ser desenhados de forma a poderem focar tanto
o copo, em cima da mesa da esplanada, ao alcance da mão, quanto a matrícula de
um carro na mesma direção do olhar mas a muitos quilómetros, ou quanto as
bactérias que se encontrem na beira do copo. O utilizador escolhe em que escala
a realidade lhe aparecerá de cada vez, o que os nossos sistemas visuais
naturais não nos facultam.
Imagine-se, ainda, que é inverno, a esplanada fica
numa tão bela quanto ventosa praia, mas nem por isso quem não aprecia o fresco
deixará de se demorar confortavelmente aí sentado. Por na esplanada estarem
imersas tecnologias de medição da temperatura, humidade e vento, de contraste
dos valores medidos com os padrões do conforto humano, porventura também
tecnologias de reconhecimento de expressões faciais e verbais dos utentes
friorentos, mais a que ordene um robô aquecedor a deslocar-se até à mesa, e a
perguntar, na língua dos utentes, pela temperatura e ventilação que mais lhes
agrade. Enquanto, fora da esplanada, se registam menos dez graus centígrados do que junto àquela mesa.
Será em relação aos resultados, a montante e a
jusante, dessas mediações por fusão, aumentação e imersão que precisamos de
responder àquele segundo complexo de questões: como poderemos lidar com elas
sem nos alienarmos? Há sequer algum valor no Homo Sapiens que se deva não
perder ou alienar contra os projetos transhumanistas? Se sim, qual exatamente?
A pergunta pelo ser humano é fundamental desde os alvores das civilizações Clássica, Islâmica, Ocidental… Mas, com a crescente implementação das NBIC mormente quando em convergência, tornou-se também sociotecnicamente urgente.
* O transhumanismo é uma corrente de pensamento que promove a intervenção tecnológica sobre os espécimes Sapiens, na produção artificial, por parte desses últimos, do que porventura constituirá já outra espécie do género Homo.
adaptado de Correio do Minho (ed. impressa), 08/02/2025
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