O funicular da Glória e a gestão de riscos
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Segundo
a nota informativa do Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com
Aeronaves e de Acidentes Ferroviários (GPIAAF), antes do relatório preliminar
que este Gabinete anunciou para breve, a causa do acidente do funicular da
Glória encontrar-se-á no rompimento do cabo de equilíbrio entre o peso dos dois
veículos (cabines), na sua ligação à peça (trambolho) que o deveria fixar à
secção inferior (leito) do respetivo veículo. Me parece, entretanto, que os
principais pontos de investigação anunciados pelo GPIAAF descuram um ponto
prévio crucial.
Desde
logo, essa causa não se encontrará na operacionalização pelo guarda-freio, o
qual terá tido a competência de, em menos de um minuto e numa situação
fisicamente instável e emocionalmente perturbadora, acionar os dois freios
supostamente de segurança. Uma vez que nenhum dos principais pontos de
investigação anunciados pelo GPIAAF se refere à competência, ou até à
deontologia profissional, dos técnicos da manutenção, ignoremos aqui a hipótese
particular de a falha residir na operacionalização deste protocolo.
Resta
investigar os designs técnicos das funções a realizar pelo artefacto, da
estrutura física e dos respetivos componentes que precisamente realizariam
aquelas funções, e do protocolo de manutenção. Mais a decisão última sobre o
providenciamento do serviço, na Carris, ou até no tomador do serviço, a Câmara
Municipal de Lisboa, para o disponibilizar aos utilizadores.
Naquele
primeiro momento do design, os agentes decidem sobre que funções devem ser
postas em correspondência a certos objetivos sociais. A função de equilibrar os
pesos das duas cabines tem satisfeito o objetivo de transporte de passageiros
em declives acentuados; mas não deveria um equipamento de transportes
ferroviários, em tais declives, contar com um sistema redundante (e eficiente)
de travagem? No segundo momento, os designers decidem sobre que estrutura
física e que respetivos componentes devem ser postos em correspondência àquelas
funções – ex. de que material deve ser composto o cabo de equilibrío, ou que freios seriam empiricamente fiáveis na travagem de veículos
como o funicular da Glória? E, pela experiência com protótipos e primeiros
modelos, decidem sobre que protocolo de manutenção deve ser implementado em
vista da satisfação daqueles objetivos. Já se se deve procurar algum sistema
técnico para satisfazer esses últimos, quais os recursos disponíveis para a
eventual produção de tais sistemas, e quais os princípios que a sua
operacionalização deve respeitar, isto será da conta dos decisores últimos.
Essas
tomadas de decisão são determinantes dos principais pontos de investigação
anunciados pelo GPIAAF. Mas, se não percebi mal a formulação destes últimos,
não são enfatizadas nesta investigação.
A
propósito deste caso – mas está a fazer um ano que publiquei noutro sítio uma
nota equivalente sobre o incêndio no hospital público de São Miguel, na qual
apontei outros tantos tipos de casos similares –, creio que seria avisado, na
investigação sobre as referidas tomadas de decisão, focar a avaliação dos
riscos que esses decisores devem ter feito, porventura em concertação uns com
os outros.
Uma
determinação do risco requer uma avaliação da gravidade dos acidentes
possíveis, e uma estimativa da probabilidade da sua ocorrência. Neste caso, a
gravidade seria obviamente máxima, embora a probabilidade fosse baixa. Quantificadamente,
o risco não seria assim máximo, mas também não seria despiciendo. O nível ótimo
do seu incorrimento terá sido então compatível com os custos, grosso modo,
intermédios, do cabo escolhido e da execução do protocolo de manutenção
adotado? Terá sido compatível com a dispensa de sistemas redundantes fiáveis de
travagem?
Em
começo de ano letivo, deixo ainda uma observação aos Conselhos Pedagógicos das
faculdades portuguesas de engenharias: em alguma unidade curricular se insiste que
os códigos de ética da engenharia não prescrevem, apenas e em geral, a condução
da profissão com integridade? Além disso, importa especificar que os técnicos
se devem conduzir assim face a empregadores – como o Conselho de Administração
da Carris – e a clientes – como os possíveis viajantes nos funiculares de
Lisboa. Bem como face à sociedade que, afinal, sustenta todas essas
instituições. A dificuldade de certas posições dos técnicos face a empregadores
e/ou a clientes, que, pelo preço pessoal dessas posições, psicologicamente pode ser relevantíssima,
é irrelevante em relação ao valor ético da ação.
Quanto à
tão falada prestação de contas e responsabilização (accountability) política,
não parece que tenhamos melhor do que as próximas eleições.
In SAPO, Tek Notícias, 26/09/2025
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