O funicular da Glória e a gestão de riscos

foto Wikipédia

Segundo a nota informativa do Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários (GPIAAF), antes do relatório preliminar que este Gabinete anunciou para breve, a causa do acidente do funicular da Glória encontrar-se-á no rompimento do cabo de equilíbrio entre o peso dos dois veículos (cabines), na sua ligação à peça (trambolho) que o deveria fixar à secção inferior (leito) do respetivo veículo. Me parece, entretanto, que os principais pontos de investigação anunciados pelo GPIAAF descuram um ponto prévio crucial.

Desde logo, essa causa não se encontrará na operacionalização pelo guarda-freio, o qual terá tido a competência de, em menos de um minuto e numa situação fisicamente instável e emocionalmente perturbadora, acionar os dois freios supostamente de segurança. Uma vez que nenhum dos principais pontos de investigação anunciados pelo GPIAAF se refere à competência, ou até à deontologia profissional, dos técnicos da manutenção, ignoremos aqui a hipótese particular de a falha residir na operacionalização deste protocolo.

Resta investigar os designs técnicos das funções a realizar pelo artefacto, da estrutura física e dos respetivos componentes que precisamente realizariam aquelas funções, e do protocolo de manutenção. Mais a decisão última sobre o providenciamento do serviço, na Carris, ou até no tomador do serviço, a Câmara Municipal de Lisboa, para o disponibilizar aos utilizadores.

Naquele primeiro momento do design, os agentes decidem sobre que funções devem ser postas em correspondência a certos objetivos sociais. A função de equilibrar os pesos das duas cabines tem satisfeito o objetivo de transporte de passageiros em declives acentuados; mas não deveria um equipamento de transportes ferroviários, em tais declives, contar com um sistema redundante (e eficiente) de travagem? No segundo momento, os designers decidem sobre que estrutura física e que respetivos componentes devem ser postos em correspondência àquelas funções – ex. de que material deve ser composto o cabo de equilibrío, ou que freios seriam empiricamente fiáveis na travagem de veículos como o funicular da Glória? E, pela experiência com protótipos e primeiros modelos, decidem sobre que protocolo de manutenção deve ser implementado em vista da satisfação daqueles objetivos. Já se se deve procurar algum sistema técnico para satisfazer esses últimos, quais os recursos disponíveis para a eventual produção de tais sistemas, e quais os princípios que a sua operacionalização deve respeitar, isto será da conta dos decisores últimos.

Essas tomadas de decisão são determinantes dos principais pontos de investigação anunciados pelo GPIAAF. Mas, se não percebi mal a formulação destes últimos, não são enfatizadas nesta investigação.

A propósito deste caso – mas está a fazer um ano que publiquei noutro sítio uma nota equivalente sobre o incêndio no hospital público de São Miguel, na qual apontei outros tantos tipos de casos similares –, creio que seria avisado, na investigação sobre as referidas tomadas de decisão, focar a avaliação dos riscos que esses decisores devem ter feito, porventura em concertação uns com os outros.

Uma determinação do risco requer uma avaliação da gravidade dos acidentes possíveis, e uma estimativa da probabilidade da sua ocorrência. Neste caso, a gravidade seria obviamente máxima, embora a probabilidade fosse baixa. Quantificadamente, o risco não seria assim máximo, mas também não seria despiciendo. O nível ótimo do seu incorrimento terá sido então compatível com os custos, grosso modo, intermédios, do cabo escolhido e da execução do protocolo de manutenção adotado? Terá sido compatível com a dispensa de sistemas redundantes fiáveis de travagem?

Em começo de ano letivo, deixo ainda uma observação aos Conselhos Pedagógicos das faculdades portuguesas de engenharias: em alguma unidade curricular se insiste que os códigos de ética da engenharia não prescrevem, apenas e em geral, a condução da profissão com integridade? Além disso, importa especificar que os técnicos se devem conduzir assim face a empregadores – como o Conselho de Administração da Carris – e a clientes – como os possíveis viajantes nos funiculares de Lisboa. Bem como face à sociedade que, afinal, sustenta todas essas instituições. A dificuldade de certas posições dos técnicos face a empregadores e/ou a clientes, que, pelo preço pessoal dessas posições, psicologicamente pode ser relevantíssima, é irrelevante em relação ao valor ético da ação.

Quanto à tão falada prestação de contas e responsabilização (accountability) política, não parece que tenhamos melhor do que as próximas eleições.


In SAPO, Tek Notícias, 26/09/2025

Comentários

Mensagens populares deste blogue

De incêndios vários à decisão e prestação de contas

A reindustrialização e a tecnologia como vontade

V. Machado Faria e Maia: A modernização da indústria de laticínios em São Miguel – 1937-1946