Da inovação tecnológica tal qual se faz - 2 lições de um caso de estudo

Em época de IV Revolução Industrial – com a introdução da IA, especialmente quando em convergência com a robótica, a IoT, as bioengenharias e as nanotecnologias, nas nossas práticas sociais – em vista de mantermos algum controlo do processo a favor da maioria de nós (idealmente, de todos), temos de o acompanhar compreensivamente. Um tipo de raciocínio de que dispomos para o efeito é o da analogia com inovações tecnológicas anteriores. É certo que a força destas inferências naquele caso não será grande, uma vez que a força de uma analogia varia inversamente com o grau de novidade do termo em causa (do “análogo ao análogo”), e a IA capaz de aprendizagem é uma boa candidata ao título de maior novidade tecnológica desde as pedras lascadas. Mas, para evitar a volatilidade das especulações concetuais, não temos muito melhor do que esse tipo de inferências.

Volto, assim, a um caso de inovação tecnológica que aqui trouxe: a substituição do sistema tradicional de ordenha e maneio do gado nos Açores, assente na energia humana e animal, por um sistema mecanizado. Para trazer hoje dois episódios desse caso que me parecem ilustrativos de como estas inovações, efetivamente, ocorrem.

Ordenha em pasto com máquina móvel.
Captura provável: décadas de 70 e 80, séc. XX.
BPARPD. Col. Manuel Silveira Paiva, cx.18, n.º361.
Um é o relato do atual dirigente de uma das associações de lavradores açorianos do seu primeiro encontro com as máquinas de ordenha móveis, que ainda caracterizam o sistema de ordenha mecanizada no arquipélago.

Era ele jovem, e ajudava um amigo na ordenha manual da manada do pai deste outro rapaz. Esse lavrador fora hospitalizado, mas ainda assim manteve a introdução de uma máquina de ordenha na sua lavoura, que contratualizara com a empresa fornecedora do equipamento. Chegaram então os técnicos com a máquina à pastagem onde se encontravam os dois rapazes, em plena ordenha. Explicaram o modo de operacionalização desse sistema técnico, porventura também o seu funcionamento, e os rapazes, no dizer do atual engenheiro e dirigente associativo, perceberam quase nada. Um dos técnicos achou que o melhor seria fazerem uma demonstração prática. Mal ligou o aparelho, as vacas fugiram espalhando-se pela pastagem. Os rapazes levaram a tarde toda a reuni-las. (Aponto que uma descarga de adrenalina inibe a descida do leite para os canais no úbere, a ordenha não há de ter sido grande coisa nessa tarde.) Enfim, a habituação dos animais levou dias, necessitando de muita paciência dos dois novos operadores da máquina.

Ou seja, nem sempre os agentes da inovação tecnológica são os seus promotores – o lavrador estava no hospital, e os rapazes não estavam preparados para aquela inovação – de forma que o processo se pode tornar descontínuo ou segmentado. Os técnicos talvez saibam tudo sobre a máquina que lhes diz respeito, e alguma coisa sobre comunicação com os eventuais operadores, mas se lhes faltar a perceção de que, além da mesa de design e da oficina, outros elementos podem condicionar a inovação tecnológica efetiva, podem não antecipar a possibilidade de eventos como a reação das vacas ao som da máquina. De qualquer forma, tudo acabou bem? Pois acabou, mas graças a uma competência pessoal (soft skill) que nem teria sido relevada previamente pelos técnicos na sua comunicação, e que só contingentemente era possuída pelos dois inesperados recetores do equipamento: a paciência – em relação àqueles esquecidos terceiros elementos do sistema sócio-técnico-animal.

Moral da história: conceber ou planear será útil, ou até necessário para a inovação tecnológica, mas não é suficiente para esta última.

O âmbito do outro episódio é hoje especialmente caro na academia, mas fora dela também não o deveremos desconsiderar: a questão de género neste tipo de processos.

Um dos obstáculos à inovação acima referida era a excessiva fragmentação da propriedade rural e a diminuta dimensão dos respetivos blocos. A este respeito, um técnico de um instituto público envolvido na promoção do emparcelamento rural açoriano, desde meados da década de 1980, contou-me o protocolo retórico que, informalmente, acabara por ser desenvolvido e implementado nesse instituto:

1.º passo: durante a semana, ir à pastagem e apresentar os procedimentos de emparcelamento ao lavrador, ao que este, se não negasse logo, diria ter de pensar. Neste caso – 2.º passo: à saída, como quem se lembra de um pormenor secundário, dizer-lhe que seria sempre precisa a assinatura da esposa, pelo que se lhe pedia licença, a ele marido, para ir falar também com ela. Dada a deferência, a resposta tenderia a ser afirmativa. 3.º passo, então o decisivo: ao domingo ou noutro dia em que fosse provável que o homem não estivesse em casa, ir explicar detalhadamente a proposta à senhora. Ela concordaria ou não. Se concordasse, o 4.º passo seria ir à pastagem, uns dias depois, receber a aceitação do lavrador.

Contei este episódio na sessão mencionada na crónica anterior, pois diversos investigadores se tinham manifestado interessados no trator como símbolo do poder masculino etc. Imediatamente, uma austríaca com investigação creio que no mundo rural polaco e um belga que apresentara uma comunicação precisamente sobre a múltipla simbologia do trator, apontaram traços equivalentes a esse episódio micaelense. E um suíço, que antes assinalara que a tratorização fora feita no seu país sob o lema da poupança das crianças e mulheres ao trabalho físico nos campos, libertando-os para a escola… e para o cuidado da casa de família precisamente quando a máquina compensaria a menor força física média das mulheres, reconheceu que, todavia, a contabilidade das explorações agrícolas, e assim boa parte das decisões de gestão, continuara a ser feita maioritariamente pelas mulheres.

O que retiro de episódios como estes é que, bastas vezes, o que é masculino será a expressão pública do poder, mas isto não se identifica necessariamente com o exercício do poder decisório. A relação ternária ‘homem – artefacto tecnológico ou plano técnico – mulher’ pode ser diferenciada não apenas pela diferença entre as relações binárias que comporta (homem-artefacto, artefacto-mulher, mulher-homem), mas ainda por uma multiplicação de níveis dessas relações além daquele que é manifesto. Não sendo límpido quem ou o quê decide exatamente sobre o quê.

Em suma, e retomando uma pista daquela crónica anterior: faz sentido usar uma palavra como “realidade”, para designar algo mais complexo e fluido do que a limpidez das lestas palavras com que se lhe quer dar forma.

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