Em recente entrevista ao jornal Observador (23/03/2025), Josephine Quinn, autora de O Mundo Criou o Ocidente (Temas e Debates, 2025), sustentou que a conceção de “civilizações culturais separadas” é errada. Refere-se particularmente a um suposto Ocidente, enraizado na civilização Clássica e na tradição judaico-cristã. Julgo que o seu raciocínio, porém, não constitui um argumento, mas sim uma falácia. Aliás, a sequência de duas falácias. Cuja correção nos traz às escolhas que, de uma forma ou de outra, faremos nas próximas eleições legislativas.
Se não me
perdi ao longo da entrevista, o raciocínio dessa historiadora da Antiguidade
(agora na universidade de Cambridge) pode ser resumido na seguinte sequência de
proposições: o sentido do conceito de uma tradição coletiva humana, como
“Ocidente”, decorre simplesmente da génese ou formação dessa sua referência. As
culturas europeias – a que presume se referir originalmente aquele conceito –
verificam inúmeros cruzamentos com outras culturas, nomeadamente linguísticos,
tecnológicos etc. Portanto, se a ideia de uma civilização ocidental chega a ter
algum sentido, não será o de uma comunidade ou tradição autocontida e distinta
das demais.
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mapa das civilizações, conforme S. Huntington - criticado por J. Quinn |
Se
admitirmos isso, a suposta segunda premissa torna-se falaciosa por constituir
uma amostra não representativa, a despeito de ser longa a lista de cruzamentos
culturais. Antes, acima destes últimos, deveremos considerar o processo desde a
filosofia grega à Revolução Científica do séc. XVII e seus desenvolvimentos,
Francis Bacon e a relevância tanto prática e social quanto teórica da
tecnologia, a conceção do ser humano como pessoa à imagem de um Criador, as
tradições da Magna Carta e da Doutrina Social da Igreja…
Contra a
crítica de Quinn a qualquer “pensamento civilizacional”, é com esse último que
os ocidentais identificarão o âmbito dos problemas que reconheçam no fim do
primeiro quartel deste século. Analisarão os seus elementos e respetivas
relações – numa equação –, ou o processo que terá gerado tais problemas – num
diagnóstico –, em vista de uma resolução. E que, neste trabalho resolutivo, selecionarão
e implementarão recursos culturais como os acima mencionados. É por isto mesmo
que se constituem como “ocidentais”. É assim que podem aspirar ao sucesso que
todos os outros que parcialmente os têm emulado, ou que emigram para os
territórios ocidentais, lhes reconhecem.
Julgo
que essa é a nossa condição portuguesa. Ainda que, desde sempre na periferia desta
civilização, com a particularidade de o desenvolvimento ou intensidade do seu
núcleo variar em nós inversamente seja com a abertura de pistas heterodoxas –
como o acolhimento de Francisco Suárez na preparação do pensamento Moderno, ou
como Fernando Pessoa a esboçar a culminação deste pensamento –, seja com
ajustes facilitados por cruzamentos com outras civilizações e culturas – como a
tecnologia de navegação à vela, mencionada pela referida historiadora britânica
sobre a expansão marítima portuguesa. E também com a possibilidade de falharmos
em ambos os termos: nem desenvolvermos o núcleo civilizacional, nem
contribuirmos para a sua renovação ou ajuste.
É esta
última possibilidade que nos convém evitar. Em mais uma eleição de candidatos e
projetos legislativos e executivos. Enquanto no mundo se desenvolve a indústria
4.0 – que otimiza a eficiência pela digitalização e automação – na expetativa
de uma indústria 5.0 – de cooperação já entre agentes humanos e artefactos
inteligentes. Enquanto o clima se altera mais rapidamente do que se previa há
duas décadas, com desafios para uma vida humana confortável no território
português. Enquanto nos resta ajustarmo-nos às condições económicas e
socioculturais do nosso envelhecimento demográfico, por um lado, e da imigração,
pelo outro lado. Enquanto temos um (pequenino) papel no jogo entre os países
europeus, que decidirá entre alguma recomposição do projeto gerado com as
Comunidades Europeias, ou a secundarização mundial deste berço da civilização
ocidental.
Nesta
circunstância histórica, como se posicionam os candidatos e projetos que se
apresentam às próximas eleições?
Com
Josephine Quinn, uns – suponho que com o Bloco de Esquerda à cabeça –
simplesmente enjeitarão o “pensamento civilizacional” ocidental que aqui reconheci.
Outros
identificar-se-ão com a matriz ocidental. Ainda que priorizando diferentes
valores políticos seus – como a Iniciativa Liberal e a liberdade individual, o
CDS e a segurança tradicional. Me parece que seria também este o caso dos
antigos partidos Socialista de Mário Soares e Social-Democrata de Cavaco Silva
– o primeiro priorizando o valor da igualdade (de condições de vida), o segundo
procurando alguma articulação desses três valores políticos da Modernidade
ocidental.
Mas o
mais relevante é que, mesmo que a intenção do PSD refundado (a expressão aqui
talvez seja forte) por Montenegro e do PS refundado (aqui não me parece que a
expressão seja forte) por Costa seja aumentar e segurar o poder das respetivas parcelas
da oligarquia nacional, o modo como o farão não deixará de responder a desafios
como os acima apontados. Seja numa resposta, para o país, bem-sucedida, seja
noutra malsucedida.
in Correio do Minho (ed. impressa), 11/04/2025
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