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Fotografia: L. Pimentel, netsegura.pt |
Muitas pessoas reclamaram então alguma
regulamentação dos conteúdos desses novos canais de comunicação. Por sinal, dias
antes, o Parlamento Europeu tinha votado favoravelmente a Lei dos Serviços
Digitais – a aprovar depois pelo Conselho da UE.
Mas a alguns de nós não é fácil dormir
descansados à sombra das instituições legislativas. Pois estas têm oscilado entre
o atraso de quaisquer tais intervenções e, numa inclinação logo para o extremo
regulamentador oposto, no nosso país até a Iniciativa Liberal demorou a
denunciar o art. 6º da Carta de Direitos Humanos na Era Digital (parecia
saído da Conversa em Família de Marcelo Caetano na RTP, quando o Presidente do
Conselho disse que nada do que era do interesse público era escondido, mas
competia ao Estado determinar o que fosse desse interesse).
‘Vácuos legais’ e a exigência liberal
Em geral, numa civilização global marcada
por novas tecnologias que estão a subverter os tradicionais estatutos de ferramenta, de natureza e mesmo de ser humano, temos de atender ao alerta
de James H. Moor, precisamente um dos fundadores da ética dos computadores ou "ciberética",
para a possibilidade de as inovações tecnológicas abrirem "policy vacuums".
Será aqui o caso da facilidade de acesso,
mediante a Internet e smartphones ou PC, a conteúdos cujo acesso televisivo
etc. podia ser razoavelmente controlado com a regulação dos horários de
transmissão, a classificação de conteúdos…
A possibilidade de alguma regulamentação da
produção e utilização das tecnologias de informação e comunicação (TIC), no
entanto, remete-nos para a questão de algum limite da liberdade de expressão e
comunicação, e para o modo da sua aplicação.
Isso não constitui qualquer problema para
todos quantos “have been talking to Jesus all [their lives]” (Genesis). Ou que
têm falado antes com a Natureza, com as respetivas nações, com o sentido da
história, com as essências de cada minoria étnico-cultural, de género etc.
Dessas suas conversas, trazem a iluminação para o sentido em que se impõe
orientar a comunicação entre as restantes pessoas. E a sua (dos iluminados)
investidura do direito e até do dever de o fazer.
Enquanto, porém, o número desses
telemóveis abençoados continuar privado, quaisquer justificações do conteúdo de
tais conversas permanecem igualmente privadas. Assim, as restantes pessoas não
as podem ponderar. Apenas se converterão em virtude desses iluminados se se submeterem ao paternalismo, se
não até à violência destes últimos. Mas tanto a
violência quanto mesmo o paternalismo são inaceitáveis para quem coloca a
liberdade individual no topo da pirâmide dos valores políticos. Enquanto
sustentarmos a democracia liberal, pois, o alcance prático daquelas conversas
deve restar tão limitado quanto o conteúdo delas.
À volta do Princípio do Dano Alheio
No seu seio dessa heterogénea família liberal,
tenderemos a enfrentar quaisquer vácuos legais com base no Princípio do Dano Alheio, de John Stuart Mill: as ações de alguém apenas devem ser restringidas, então
se necessário mediante a força coerciva das instituições estatais, quando prejudicam
outrem.
Mas este é um caminho das pedras (como
compreendemos bem anseios de clarividência e de retidão garantida como o cantado
pelos Genesis!).
Com efeito, para evitarmos classificar
como "prejuízo", por exemplo, vacinas que causem alguma dor ou febre, definimo-lo
como um mal não consentido (as vacinas podem causar dor ou febre, mas são consentidas). Todavia, o que constitui consentimento? – será uma
disposição mental… como se reconhece? Será um comportamento verbal e/ou não
verbal… mas não podem estes ser coagidos ou muito influenciados? E como se
determina quem tem autoridade de consentimento? – por exemplo, em relação a alguém com
deficiência mental profunda, e se for ligeira, ou se esse alguém for
sociotecnicamente iliterato, ou apenas com uma vida profissional que lhe não dê
tempo e descanso para refletir…
Mais: o outro referido por esse
princípio moral inclui animais, como cães? E se forem galinhas?…
Enfim, especificamente sobre um vácuo
ciberético relativamente aos conteúdos publicados, o facto é que, nas atuais
TIC, a fonte da comunicação (pessoa que a gera e envia o sinal da mensagem
mediante um aparelho emissor) não interfere fisicamente com o destino (quem a
recebe mediante um recetor). Suponhamos a comunicação referida no início: esse destinatário,
cognitivamente, tem sempre de interpretar a mensagem suportada pelo sinal – o referido desafio apenas como uma fantasia a imaginar, ou já como algum
ensaio comportamental, ou mesmo como um ato a cumprir –; volitivamente, tem de
decidir a respetiva implementação; e, praticamente, tem de ter as condições
físicas de o fazer. Quais serão, assim, os pesos das responsabilidades,
respetivamente, de quem se limita a expressar uma proposição numa fórmula e emitir o correspondente sinal eletromagnético, e de quem aciona e sintoniza o recetor, constitui a
mensagem pela interpretação que faz daquela fórmula, se motiva a implementá-la
comportamentalmente?
Por uma ciberdeontologia minimalista
À falta de melhor e dada a urgência de alguma
resposta a um vácuo legal que ainda se verifica, podemos acordar um mínimo
denominador comum em relação aos outros reconhecidos no Princípio do Dano Alheio: serão todos quantos, pelo menos, participem direta e voluntariamente
nas interações comuns. (Refiro-me aqui apenas a um minimalismo político, o minimalismo ético – da destituição de sentido moral de quaisquer preceitos de desenvolvimento pessoal além da interação social – ficará para outros fóruns). Julgo que mesmo quem não reivindica qualquer iluminação será
capaz de reconhecer de forma aproximada tais participantes diretos e voluntários.
Designadamente, os cães, as galinhas etc.
participam diretamente, mas não é claro que o façam por vontade própria. Em
troca, entidades imateriais – p. ex. o anjo Gabriel apresentando o Corão a
Maomé, ou Nossa Senhora em Fátima – poderão ter essa vontade, mas só intervêm
mediante os seus sacerdotes materiais, não satisfazem, pois, a primeira
condição.
Quem satisfaz ambas são agentes como
escritores, cuja liberdade deve ser defendida quando outras pessoas decidem
que, noutro exemplo também deste verão, os textos dos primeiros ofendem algum interlocutor
privado dos segundos, e estes se dispõem a esfaquear aqueles autores.
Quanto ao consentimento, em particular neste caso de conteúdos como o
Blackout Challenge, colocam-se questões sobre um paternalismo de quem controle essa publicação. Mas, numa rede social
dirigida eminentemente a crianças e adolescentes, estamos legitimados para
assumir os resultados obtidos desde há décadas pela psicologia do desenvolvimento.
E invocar as menoridades cognitiva e volitiva das crianças e mesmo adolescentes,
não acompanhadas por falta de capacidade física em particular dos últimos (o que lhes permite executar quaisquer comportamentos), para
reclamarmos uma intervenção do Estado em tais comunicações digitais.
Admitiremos, assim, que o Princípio do Dano Alheio não se aplica apenas a cada agente, negativamente, na mera anulação
dos seus comportamentos prejudiciais a outrem. Aplicar-se-á ainda às pessoas e
instituições (como as do Estado) perante ações de segundos (como os produtores
do Blackout e os gestores do TikTok) que prejudiquem terceiros vulneráveis
(como os jovens utilizadores dessa rede). Prescrevendo-se, positivamente, uma
intervenção dos primeiros que obste ao dano dos últimos.
Relativamente a um controlo da comunicação
em geral no espaço digital, evitar qualquer paternalismo andará perto de uma
quadratura do círculo. Mas tais pedras concetuais ficam já para o acompanhamento,
além destas linhas, dessas iniciativas legislativas e respetiva execução. Aqui,
fica apenas o voto para que se mantenham politicamente minimalistas.
original in Etc. e Tal – Jornal, 01/10/2022
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