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A Covid-19 e o “enviesamento do crescimento exponencial”

Há um ano, enquanto chegavam notícias da expansão da Covid-19 aos primeiros países europeus, a saúde pública portuguesa continuava regular. Só mais tarde apareceram aqui os primeiros casos, e poucos. Mas, a 14 de março, a ministra da saúde reconheceu que o crescimento da pandemia no país se tornara exponencial. E na segunda quinzena desse mês, segundo dados da Johns Hopkins University, estivemos nos primeiros lugares mundiais nesse parâmetro (segundo os números conhecidos, claro).

Esse tipo de crescimento é ilustrado pela história do pedido do matemático indiano Sessa Ibn Daher ao seu soberano, quando este o quis premiar pela invenção do jogo do xadrez: um grão de trigo na primeira casa do tabuleiro, dois na segunda, quatro na terceira, oito… sempre duplicando até à 64ª casa. O soberano logo aceitou, mas, quando calcularam a riqueza assim indicada, o reino inteiro não a valia. Em troca, num crescimento linear o aumento é sempre aproximadamente o mesmo – p. ex. em cada nova casa do tabuleiro acrescentar-se-ia 1 kg. de trigo; nos momentos iniciais o aumento pode ser maior, mas depois o crescimento linear é incomensuravelmente ultrapassado pelo exponencial.

Alguns de nós partilhámos então os números da Johns Hopkins, como alerta de alguma particular vulnerabilidade portuguesa à doença, e do perigo de um súbito pânico social se o processo continuasse.

Muitos mais, porém, logo se ergueram em defesa da abordagem linear. Na qual os números absolutos portugueses, e a sua taxa em relação à nossa população, ainda eram inferiores aos de países onde a pandemia começara mais cedo. Daí a tese do “milagre português”.

Cuja defesa justificará antes a tese de David Robson em “Exponential growth bias: The numerical error behind Covid-19” (BBC Future, 13/08/2020): muitas pessoas, mesmo entre as que frequentaram matemática no ensino superior, tendem a perspetivar qualquer crescimento como o soberano de Sessa Ibn Daher. E este erro matemático está a “custar vidas”.

Em abril de 2020, felizmente, um qualquer fator terá compensado essa vulnerabilidade portuguesa – se esta foi o frio mas sem chegar à congelação das gotículas, terá sido a primavera; se se encontrava em certos hábitos de socialização, então o confinamento…

Pelo que a ministra da saúde e os seus pares puderam dispensar-se de interpretar as palavras dela. E, com o referido apoio social, passaram o verão e abordaram o natal como um homem que acordasse com o alarme da casa a tocar, saltasse da cama, mas entretanto o alarme se silenciasse. E o homem, em vez de inspecionar a casa, se voltasse a deitar sem ao menos encostar uma cadeira à porta do quarto e ajeitar um taco de basebol ao lado da cama.

Voltando agora as temperaturas do inverno português, ou no natal os nossos hábitos sociais… o resultado está a ser o expectável. Este texto, portanto, é uma crónica de muitas mortes anunciadas.

Mas depois dos tempos, tempos vêm. Para os quais deveremos reter a lição do citado especialista em neurociências e psicologia contra o enviesamento do crescimento exponencial. Contra, afinal, a dramática iliteracia científica.


in: Correio dos Açores, 06/02/2021

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