Vacinação ou não das crianças, construção ou não de
uma incineradora em S. Miguel… – A comparação entre estas atuais disputas sócio-tecno-científicas
desde logo nos faculta assinalar os (já!) 20 anos daquela que talvez seja a
mais importante ação de promoção da cultura científica até hoje ocorrida em
Portugal. Que mais não fosse por isto, valeria a pena abordar aqui aquelas
disputas.
Refiro-me ao ciclo de conferências “A ciência tal qual
se faz”, que decorreu entre outubro de 1996 e janeiro de 1998 na Fundação
Calouste Gulbenkian, em mais uma iniciativa do ministro José Mariano Gago, sob
coordenação do filósofo Fernando Gil. E, concretamente, à comunicação que o
sociólogo da ciência Harry M. Collins ali apresentou, sob o título que importei
para esta crónica.
Mas aquela comparação, além de comemorar a efeméride,
creio que nos sugerirá ainda um desenvolvimento do esquema de Collins.
O qual – pelo menos até 2010 – bem se aplicou à
disputa entre os defensores e os oponentes da vacinação infantil. Nomeadamente
desde 1998, quando a revista inglesa The
Lancet publicou um artigo do médico Andrew Wakefield (em co-autoria), apresentando
evidências de uma correlação entre a vacina VASPR (contra o sarampo) e o
desenvolvimento de autismo. Uma tese reforçada pelo artigo assinado primeiramente
pelo médico Jeff Bradstreet (et al.), relacionando essa doença às vacinas em
geral pela toxicidade do mercúrio que estas contêm, publicado em 2003 pelo
norte-americano Journal of American
Physicians and Surgeons (vol. 8, Nº 3).
Quando a resolução "científica" é científica
Quando a resolução "científica" é científica

Ou seja, o campo onde se apresentam os resultados de
investigações empíricas segundo certos enquadramentos teóricos, e/ou as
argumentações relativas a cada um destes. Quando aí ocorre uma
disputa, porém, ambas as partes separadas (daí o nome “mitose”, v. fig. 2) mantêm alguma incerteza nas respetivas teses, dada a consciência que têm de condicionantes dos seus pressupostos teóricos, da falibilidade de cada um dos inúmeros processos experimentais, da margem de erro dos tratamentos estatísticos da informação, etc.
disputa, porém, ambas as partes separadas (daí o nome “mitose”, v. fig. 2) mantêm alguma incerteza nas respetivas teses, dada a consciência que têm de condicionantes dos seus pressupostos teóricos, da falibilidade de cada um dos inúmeros processos experimentais, da margem de erro dos tratamentos estatísticos da informação, etc.
Até surgir alguém que o sociólogo inglês – na base da
sua investigação sobre a evolução histórica das propostas da fusão a frio (reação
de fusão nuclear à temperatura ambiente), e da deteção de ondas gravitacionais
(séries de “flutuações” ou alterações da estrutura do espaço-tempo) – designou
por “campeão do encerramento” da disputa em causa.
Não por uma diluição daqueles condicionantes teóricos,
falibilidade procedimental… Mas sim em virtude, além de eventuais novas
evidências ou contra-argumentações lógicas, da decisão, autoconfiança… com que
o dito “campeão” apresenta a respetiva tese.
Precisamente por aquela diluição absoluta não ser
possível, após o “encerramento” a maioria dos investigadores no “núcleo
central” assume a posição do “campeão”, mas podendo restar uma minoria de
“cientistas patológicos” – expressão mais doce do que as que nestes dias
diversos médicos têm dedicado aos poucos colegas que se opõem à vacinação! – que
insistem nos argumentos favoráveis à tese vencida.
(Afinal, como bem aludiu Collins, não se pode
“encerrar” a disputa sobre quais evidências empíricas, de entre todas as que se
encontram num fenómeno, serão as mais significativas – mas esta questão
epistemológica ficará aqui (talvez) para outra oportunidade).
Assim a The Lancet retratou-se a 6 de fevereiro de 2010 do artigo de Wakefield (et al.)
invocando este conter elementos falsos. Mas (até à data da escrita destas
linhas) o artigo de Bradstreet (et al.) continua disponível online.
Entretanto os “comentadores cientificamente
instruídos” (fig. 1) – aqueles que não se dedicando à investigação do fenómeno
em causa, têm no entanto conhecimentos, tempo e interesse suficientes para as
acompanharem criticamente – “cristalizaram-se” na tese favorável à vacinação
(fig. 2). E com uma “certeza” que lhes advém de não se encontrarem
suficientemente por dentro das investigações em causa para serem “sensíveis”
aos respetivos pontos de dúvida.
Estes “comentadores” atestam então quer aos
“financiadores” e “decisores políticos”, quer ao “público geral”, a tese
vencedora, a qual assim se “consolida” nas práticas da época.
Esse caso de Jeff Bradstreet e do JAPS, porém, me parece sugerir um desenvolvimento do esquema de
H.M. Collins (este nas fig. 1 e 2), porventura ainda melhor ilustrado pela
atual disputa sobre a construção de uma incineradora de resíduos sólidos em S.
Miguel.
Quando as resoluções "científicas" e "tecnológicas" não são científicas nem tecnológicas
Quando as resoluções "científicas" e "tecnológicas" não são científicas nem tecnológicas
Com efeito, considerando a anterior disputa sobre
vacinação mas agora da frente para trás, o que primeiramente ressalta – pelo
menos a mim – é o compromisso ideológico da associação que mantém essa revista
médica. Ou seja, o núcleo não diretamente da resolução mas do seu enquadramento prévio dessa posição antivacinação encontrar-se-á numa
parte do “público” – religiosos, pensadores políticos… – cujas posições serão
presumidas pelos “cientistas patológicos” como enquadramento das respetivas
investigações tecnocientíficas.

Obtém-se assim já não uma “cristalização” da tese
dominante pelos “comentadores cientificamente instruídos”. Mas antes a
equiparação, aos olhos do público geral, de quaisquer fundamentações lógicas e
empíricas a meras opiniões e palpites. De modo que as teses científicas se
reduzam a expressões de uma “vontade de poder” (Nietzsche), a manifestações de
interesses mais ou menos ocultos.
Encerrando-se então as disputas segundo critérios simpáticos
como o da tese que mais prometa satisfazer os desejos imediatos do povo, o do “campeão”
em quem o povo mais se reveja… O mérito destes critérios a longo prazo é o que
a história dos povos avessos à racionalidade crítica exibe.
in: Correio dos Açores, 16/05/2017
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