Nestas semanas de lazer,
uma rica sugestão de leitura – tão portuguesa quanto internacional, e, no
âmbito social e humano, bem atual! – é a de Charles Darwin, juntamente
com John Dalton Hooker (botânico evolucionista, amigo de Darwin), o lamarckista
Edmond Perrier, e mais sete dezenas de vultos científicos europeus e americanos
da época. Entre os quais Gustave Le Bon, um dos primeiros cientistas sociais a aplicar
o paradigma da seleção natural.
Além de que basta um tablet ou equivalente, e algum sítio com acesso à rede, para podermos navegar pela correspondência que todas aquelas pessoas quiseram manter, e assim valorizaram e no-lo sugerem, com Francisco de Arruda Furtado.
Pela minha parte
navegarei – com a casualidade própria de uma leitura de férias – pela extensão
do paradigma darwiniano desde a malacologia, a que o
investigador micaelense mais se dedicava, até à antropologia. Mas o leitor mais
interessado pela história das ciências da vida, e particularmente pela
integração internacional da investigação portuguesa na época em que a biologia
terá começado a constituir-se até como paradigmática para as restantes ciências
e cultura em geral, encontra nesta coletânea organizada por Luís M. Arruda mais pontos de interesse.
O projeto de Arruda Furtado, como o apresentou ao seu
conterrâneo Teófilo Braga, era claro: “Conhecer a que raça
pertence o sangue predominante de um povo; conhecer o fundo da sua conduta;
utilizar as lições tomadas na evolução da raça-mãe; – convenci-me de que isto,
a poder ser determinado, será a base séria e inquestionável da arte de melhorar
os povos”
(Correspondência…: 436).
Um projeto cujo interesse teórico geral, e não apenas
para o reconhecimento e evolução de um determinado povo, foi imediatamente
reconhecido por Le Bon: “Une île perdue dans l’océan ou un territoire entouré
de montagnes escarpées telles sont les meilleures places pour étudier les
transformations que le milieu et divers facteurs ont pu faire éprouver à une
race” (ibid.: 343, 344).
Navegando por essa correspondência entramos assim
pelos mares abertos duas décadas antes por Thomas H. Huxley, com a publicação
de O Lugar do Homem na Natureza (menos
de quatro anos depois de A Origem das
Espécies, onde a evolução humana não fora particularmente tratada). A filiação
de Arruda Furtado no trabalho de Huxley é aliás até metodológica – ex. pelo
recurso a medições cranianas para caraterizar a “raça” que presume em S. Miguel.
Este darwinismo social, porém, desde o início tem sido
bem revolto.
Logo naquela época, Francis Galton avançou a proposta
da seleção artificial (pela escolha dos espécimes humanos para reprodução) como
“arte de melhorar os povos”. Um eugenismo cujo mérito – que, darwinianamente, será proporcional ao seu contributo para a sobrevivência dos regimes que
o implementem – estará assinalado nos destinos do apartheid na África do Sul, e
do III Reich.
Arruda Furtado parece ter-se antes mantido fiel à
teoria da seleção natural. Mas, no (pouco) que já li dos seus estudos sobre a tal
“ilha perdida no oceano”, não encontrei sinais que sugiram claramente alguma
das outras variantes do darwinismo social.
Com efeito, o artigo que cumpriu o seu intento
antropológico – “Materiais para o estudo antropológico dos povos açorianos. Observações sobre o povo micaelense” – apresenta
passagens como: “Encontrando [os camponeses micaelenses]
facilmente na cultura rotineira do solo os recursos de que carecem e uma
emigração fácil no caso contrário, nada os obriga a desenvolver a sua
inteligência curta” (cap IV, “Psicologia do grupo”).
Afirmações que, por um lado, sugerem a crença nos bons
resultados da pressão do meio para uma competição pela sobrevivência interna à
sociedade – a luta de todos contra todos, a que hoje vulgarmente se chama
“capitalismo selvagem”. E, por outro lado, ajudam a explicar a receção que Arruda
Furtado encontrou no seu meio social…
Aquela crença fica porém em causa em outras passagens
que reconhecem não só não ter a “moral” deste povo evoluído claramente nos
séculos de relativo isolamento, como mesmo a melhor esperança dessa evolução se
encontraria nas influências externas que então se começavam a verificar, pelo
comércio externo e por informações dos emigrantes e viajantes (ibid.).
Ora esse reconhecimento da positiva influência
cultural, ou comportamental, do comércio externo parece sugerir um darwinismo
social afinal na linha de Piotr Kropotkine – o esquema darwiniano aplicar-se-á
antes às próprias sociedades, podendo uma sociedade cooperativa vencer
competidoras destituídas deste valor.
Pergunto-me, porém, se a importação dos valores ou modelos
comportamentais, economicamente bem-sucedidos no estrangeiro, pela mão de
comerciantes e empresários locais, não constituirá já uma transmissão mais
lamarckiana do que darwiniana da informação. (Darwin propôs que apenas se
transmitem carateres inatos, variando estes casualmente; Lamarck tinha proposto
que se transmitem também carateres aprendidos intencionalmente).
O que sugerirá então um lamarckismo social. Ainda mais ajustado a um reconhecimento de
influência por simples viajantes não diretamente implicados em qualquer luta
pela sobrevivência económica.
Enfim, confirmando as esperanças de Gustave Le Bon certamente muito para além do que o antropólogo e médico francês terá imaginado, na navegação por esses textos – em boa hora disponibilizados digitalmente – somos interpelados sobre desde o darwinismo social, até às disciplinas neodarwinistas da psicologia e da ética evolucionistas. Muito trabalho… talvez mais adequado para depois de férias.
In Ciência Hoje, agosto 2015
Comentários
Enviar um comentário
Qualquer comentário cortês é bem-vindo, em particular se for crítico ou sugerir desenvolvimentos ao post.