Das decisões sobre as construções em S. Miguel desde uma
incineradora à de um oceanário, passando por prescrições médicas, políticas
fiscais etc., dizem os “tecnocráticos”: entreguemo-las aos respetivos
especialistas, que eles sabem – segundo os conhecimentos disponíveis hoje –
qual será a melhor solução.
Nenhuma aldrabice retórica é maior do que essa
tecnocracia. E, precisamente, apenas o seu reconhecimento pode salvar
a relativa objetividade que é possível à tecnologia e à ciência. Assim como aos
debates públicos sobre questões como as referidas construções projetadas para
esta ilha.
As ciências e
as tecnologias tal qual são feitas
Imaginemos duas biólogas num laboratório,
com um microscópio e, na lâmina deste, uma amostra daquilo que chamamos
“bactérias”. O que é que essas investigadoras vêem ao olhar pelas lentes
oculares? Bactérias? Certamente não. O que vêem – nunca percamos a filiação
a La Palisse – são formas arredondadas, ou cilíndricas… movendo-se enquanto o tempo passa. Precisamente por se moverem, cada mirada facultará uma imagem um pouco
diferente. Depois, através da escolha de qual grelha teórica devem aplicar ao
conjunto dessas imagens, decidem classificar o que está na lâmina como
“bactérias”.
De que estirpe? Nova interpretação. E o que se deve
fazer com tais bactérias? Agora não apenas terão de recorrer ao
reconhecimento, teórico e empírico, das relações possíveis aos elementos dessa
classe com os de algumas outras classes – ex. se destroem células de certos órgãos
humanos, etc. – como têm de recorrer à hierarquia de valores que lhes aponte o
requisitado “dever”. Primeiro o valor da segurança humana, pelo que serão testadas em
animais? Ou primeiro o valor da rentabilidade a curto prazo desse laboratório,
e serão testadas em populações africanas a troco de mais um zero na conta bancária suíça do respetivo Presidente? Valores que se não encontram já em quaisquer microscópios,
nem compêndios de biologia.
Agora imaginemos que a situação se repete. Num
laboratório A, com financiamento público garantido, as duas biólogas com
formações e experiências profissionais equivalentes, e ambas com vínculo
laboral estável. Noutro laboratório B, dependente de financiamentos privados
por interesse nos dividendos, uma bióloga é a chefe dessa secção, com longa
especialização numa estirpe de bactérias cujas imagens são do género das
obtidas nesse dia; e a outra é estagiária, sem especialização mas que acabou de
receber na faculdade as últimas informações sobre temas correlacionados a esse,
e cuja assinatura de contrato com o laboratório depende do relatório que a
chefe fizer sobre o seu estágio.
Creio que o leitor também imaginará que, sempre que houver dúvidas naquelas
interpretações teóricas, e mais ainda na escolha dos valores relevantes, nesse segundo laboratório será muito mais provável do que no primeiro que as nossas
biólogas cheguem rapidamente a um consenso. Mas frequentemente por submissão da
segunda, e não necessariamente pela força da argumentação da primeira. Se o
leitor duvida da sua imaginação, então confirme-a na série de estudos empíricos
que se seguiram ao de B. Latour e S. Woolgar, Laboratory Life: The Social
Construction of Scientific Facts (1979).
Ou seja, mesmo no âmbito da ciência tal qual ela esta
é realmente feita (não nos quadros ideais da sua definição teórica) há uma
margem de persuasão pessoal, e assim de estratégias retóricas. Margem que
aumenta seja quando se passa dos exigentes protocolos laboratoriais para a
arena pública – onde se discute a implementação de projetos tecnocientíficos –
seja, inversamente, na discussão maioritariamente privada (secreta) entre os
interesses económicos, políticos… que se confrontam – até à decisão sobre tais
projetos nos órgãos do poder executivo.
Mesmo as demonstrações de
teoremas matemáticos, por um lado (normalmente) pressupõem a validade da lógica clássica
bivalente. Mas, por outro lado, não há uma lógica absoluta que reja a demonstração de que tenha
de ser essa a lógica utilizada. Imagine o leitor as nossas cientistas, agora
matemáticas, nesta última discussão…
Posto isso, desde Aristóteles temos uma ideia muito
razoável das dimensões retóricas que potenciam a persuasão.
Escuta-me,
dá-me razão, age como eu quero
Na dimensão do ethos,
o locutor procura que cheguem a escutá-lo. O que depende da credibilidade que
ele conquista junto do auditório. Nomeadamente, por conseguir que lhe
reconheçam justiça e ponderação na matéria em causa; conhecimento desta; honestidade,
ou ausência de inconfessáveis interesses privados; e consideração (do orador)
pela condição das pessoas a quem se dirige.
Na dimensão retórica do logos, o orador tenta que lhe deem razão. Ou seja, que reconheçam a
propriedade da informação que usa, e a força dos argumentos que sustentam o que
ele propõe ao auditório.
Enfim, na dimensão do pathos, o interveniente procura que as pessoas a quem se dirige se disponham
a agir de acordo com o que ele lhes propõe. O que depende muito da empatia
emocional que esse locutor consegue criar com os seus interlocutores – isto é,
do primeiro mobilizar nestes últimos emoções favoráveis à ação para a qual ele
pretende persuadi-los.
Sobre a centralidade desta última dimensão retórica,
veja-se como um saltimbanco furioso – à partida sem qualquer credibilidade –
gritando pseudo-argumentos que envergonhariam o meu cão esperto (o outro, que é
tolo, acredito que os aceitasse), mas estimulando o ressentimento dos alemães
face à derrota militar e à crise económica, conseguiu persuadi-los a assumirem
uma guerra contra a Europa praticamente toda, e mais a América do Norte, e mais
quem viesse. Ao pé disso, conseguir a nossa chefe do laboratório B persuadir a
estagiária da interpretação da primeira sobre o que a segunda vê no microscópio,
através de alusões ao gosto que esta terá no que comprará com um salário
garantido, são amendoins.
Ora bem, a consciência deste poder persuasivo da
manipulação emocional é precisamente a melhor âncora, em todos nós, na dimensão
do logos.
De modo que, mesmo que já se inclinem para esta última,
a cada cientista ou agente de tecnologia avançada convém vivamente estudar a Retórica do referido filósofo grego. E
porventura desenvolvê-la, contemporaneamente, mediante o Tratado da Argumentação que Chaim Perelman co-escreveu com base no
universo jurídico. Ou Changing Minds
(não sei se traduzido), onde o célebre psicólogo Howard Gardner apontou o modo
de uma minoria influenciar a maioria.
Mas, mais ainda, convém que sejam lidos, e atendidos,
por todos nós que – de incineradoras a oceanários – financiamos e mandatamos as
políticas que os sustentarão, de um lado. Para do outro lhes virmos a usufruir,
ou a sofrer, os efeitos.
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