Como mostrar as horas é diferente de mostrar as horas
Há inúmeros estudos sobre a dimensão simbólica dos artefactos técnicos. As mais das vezes, ao que vejo, incidem sobre o significado que é atribuído aos artefactos pelos respetivos intérpretes conforme o contexto em que se encontram. Hoje, porém, introduzirei aqui essa dimensão em relação ao significado que a própria configuração do artefacto pode sugerir. Para isso, descreverei comparativamente dois relógios (um deles é o meu): o Longines Flagship Heritage e o Tissot Le Locle Powermatic 80.
Esteticamente, creio que a maioria das pessoas julgará ambos belos. Tecnicamente, são comparáveis: ambos são automáticos, e indicam os mesmos parâmetros cronológicos (dia do mês, hora, minuto, segundos); o Le Locle é muito estável na precisão horária, mas o Flagship poderá ser ainda um pouco mais; têm os dois uma longa durabilidade, mas certas reparações poderão ser mais fáceis nesse último; o Le Locle, em troca, tem uma reserva de marcha um pouco superior.
No entanto, ao assinalarem ambos normalmente a par os índices cronológicos correspondentes, isto é, ao apontarem a par os respetivos ponteiros para as “duas horas e oito minutos” etc., isso que é significado por um e pelo outro não será o mesmo.![]() |
| Longines Flagship |
Como o
titã Kronos, que gera e logo devora os filhos, em modo contínuo. Topologicamente,
talvez mais numa dimensão circular do que aberta, visto que a passagem perene e
contínua do pequeno ponteiro apenas mostra que, ela própria, não passa nem se
altera. Newton ter-se-ia reconhecido neste relógio.
Nessa
garantia de riqueza discreta q.b. e de estabilidade, nenhum artefacto poderá
ter sido mais apropriado do que o Flagship, quando foi lançado na década de
1950, para quem conquistara o conforto após o terror da guerra e a fome
anterior.
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| Tissot Le Locle |
Os
numerais romanos como índices horários, e a forma dos ponteiros das horas e dos
minutos (alargam no segmento central), remetem para o relógio na torre da igreja da
cidade que dá o nome a este modelo da Tissot. Com isso, esta máquina convoca a nossa tradição
histórica, isto é, um processo, sim, mas não contínuo nem determinístico, antes
construído conforme decisões pontuais. Encontro essa possibilidade do diferente,
do novo, na assimetria entre a forma simétrica dos signos “I” e “X” e a forma
assimétrica do “V” (com um segmento mais largo e outro mais comprido). Bem como na variação
dos jogos de luz e sombra, graças ao relevo do círculo interno do mostrador,
conforme o ângulo da luz.
Mas a
novidade ressalta, mais ainda, da marcha sincopada do ponteiro dos segundos.
Diferentemente, este é longo, fino, sem qualquer torneado além do contrapeso
que lhe acentua o movimento. Cujo ritmo, aliás, é de frações de segundo, tão curtas
quanto a perceção humana facilmente dê conta.
O que assim reconheço neste relógio é uma conceção
bidimensional do tempo: uma dimensão aberta (não circular) da sucessão histórica
ainda que eventualmente finita; e outra dimensão, perpendicular àquela, ao longo da qual o tempo se
constitui como kairós: a oportunidade decisiva. Isto é, em cada instante
da primeira dimensão se abre um espaço onde pode advir uma determinação do que se lhe
sucede.
Em suma, o Le Locle não me mostra o tempo de uma natureza mecanicista. Mostra-me antes o tempo da ação humana, condicionada mas ainda assim escolhida. Que será também o tempo de uma natureza em que uma onda eletromagnética pode colapsar onde e quando se encontra com o sistema que a meça. Em que um espécime vivo pode súbita e aleatoriamente apresentar um alelo até aí ausente na espécie. Como, um dia, o alelo que terá facultado a um novo espécime Homo a não-submissão à mera cadeia Kronológica. Para refletir antes sobre a estrutura, a topologia e o sentido dessa passagem; mais os símbolos, artefactuais, da conceção do tempo que daí resulte.


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