Os
benefícios potenciais dessas tecnologias são entusiasmantes. Mas a primeira
condição da sua realização será enjeitarmos, desde o início, a atitude
“tecnomágica” que atribui à tecnologia a virtualidade de resolver sem custos
tendencialmente quaisquer problemas ou limitações humanas. Contra a tecnomagia, na IA daqueles processos digitais reconhecem-se os
enviesamentos humanos e as incongruências que aqui
introduzi há dias.
Os
quais (enviesamentos), como também aí procurei assinalar, põem particularmente em risco a
liberdade “negativa” (ausência de imposições) dos habitantes destas cidades,
enquanto todavia podem facultar uma maior liberdade “positiva” (capacitação)
destes últimos.
Neste
período de reflexão crítica sobre as cidades e de projetos estruturantes para
as mesmas, como serão quaisquer projetos de tecnologias urbanas inteligentes, todos
quantos nos posicionamos em algum ponto do espectro entre aqueles dois modos do
valor “liberdade” deveremos assim procurar uma condição que se constitua qual
mínimo múltiplo comum de ambos.
Capacitação vs. restrição, e contestabilidade
Na CEPE/IACAP
Joint Conference 2021: The Philosophy and Ethics of Artificial Intelligence, no
passado mês de julho, Sage Cammers-Goodwin reconheceu essa tensão entre o
aprimoramento das ações ou até capacitação (liberdade positiva) dos habitantes
de cidades inteligentes pela intermediação destas tecnologias, e uma substancial
redução da liberdade negativa das pessoas igualmente possível aos sistemas
tecnológicos inteligentes.
Essa
investigadora propõe a condição de “contestabilidade” como o mínimo múltiplo
comum que invocamos acima, a aplicar onde possível. Esta condição é constituída
pelas admissões, tanto pelo sistema quanto por cada utilizador, de que nenhuma
das partes é suficiente para reconhecer e avaliar cada situação dada, e para
decidir aí a ação mais adequada. Uma vez que esta ação implica as intervenções
das duas partes, cada uma destas potencia o conjunto ao promover e participar
na ação, mas mantém a respetiva liberdade de evitar esta última.
Esta
condição, porém, não será unívoca. Cada designer técnico e, principalmente,
cada decisor político – nomeadamente cada eleitor – terá de decidir o nível de
contestabilidade que será requerido em geral, ou porventura para cada
tecnologia urbana inteligente.
Níveis e cláusulas de liberdade tecnológica
Particularmente
em relação aos sistemas com aprendizagem autónoma (i.e. os sistemas que
desenvolvem por si próprios os algoritmos que implementarão), podemos graduar a
requisição de contestabilidade conforme os 4 níveis apresentados por Paul de
Laat na mesma Conferência.
No menor
nível de decisão pelo utilizador – posicionamento mais positivo do que negativo
no referido espectro da liberdade – admitir-se-ão as decisões do sistema tecnológico
urbano sempre que os resultados forem satisfatórios.
Nos
quadros da UE, tende-se a exigir mais uma cláusula – numa posição no espectro ao lado da
anterior no sentido negativo: o modelo de aprendizagem autónoma de cada
tecnologia urbana inteligente também tem de ser explicável aos agentes
interessados e/ou afetados.
Aumentando
ainda o grau de contestabilidade por parte dos utilizadores do sistema, de Laat
argumentou que esses processos de decisão, além de satisfatórios e explicáveis,
devem ser interpretáveis por pessoas com literacia comum. Por exemplo, mediante
balanced scorecards (“indicadores balanceados de desempenho”: definição
dos objetivos e medição dos resultados).
Enfim,
para a maior preservação possível da liberdade negativa dos habitantes de
cidades inteligentes, simplesmente se recusarão sistemas com aprendizagem
autónoma, tendo os sistemas que ser sempre programados e operacionalizados por
seres humanos, com fiscalização independente.
Pela
minha parte, também tendo para o 3º nível (tanto quanto possível). Mas estendendo
ainda a cláusula da interpretabilidade ao reconhecimento social dos tipos de
impacto ou de efeitos que cada uma dessas tecnologias terá nos seus
utilizadores. Por isso procurei salientar esses impactos logo no 1ºartigo desta trilogia.
Qualquer que seja o nível requerido de contestabilidade, porém, tanto designers, quanto decisores políticos, quanto cada utilizador das tecnologias, devemos ter em conta os modos como quaisquer destas últimas nos impactam ou nos influenciam – os modos como causam os seus efeitos nos respetivos utilizadores. Para o que nos poderá ser útil o sistema de eixos proposto por Nynke Tromp et al. (2001).
Força e visibilidade da influência tecnológica
Segundo esses autores, uma
tecnologia pode apresentar-se aos utilizadores com maior ou menor visibilidade
(percetibilidade), e pode influenciar estes últimos com mais ou menos força.
Por
exemplo, os rails separadores entre os lados de uma autoestrada são muito
percetíveis e muito impositivos (fortes). Neste esquema concetual, essa
tecnologia diz-se “coerciva”. Dispõe-se no 1º quadrante de um sistema de eixos
ortogonais que represente a articulação daquelas duas dimensões (visibilidade
nas abcissas, força nas ordenadas). Na sua utilização, estas tecnologias podem
não ser de todo contestáveis. No entanto, a sua visibilidade faculta uma
contestabilidade política da respetiva implementação.
Quando
as tecnologias igualmente forçam os utilizadores, mas implícita ou
impercetivelmente, esses autores designam-nas “decisivas”. Dispõem-se no 2º
quadrante deste sistema de eixos. Nas cidades inteligentes, será o caso de
sistemas de reconhecimento facial em espaços públicos, com suposta
interpretação de emoções, e consequente classificação social, económica ou
política dos transeuntes e utilizadores – p. ex. o sistema chinês de “crédito
social”. Só uma sua visibilização, por transparência das instituições
públicas e por uma literacia sociotécnica dos cidadãos que lhes permita
acompanhar e avaliar os sistemas tecnológicos, facultará alguma sua
contestabilidade ao menos política.
As
tecnologias dispostas no 3º quadrante – “sedutoras” – são mais contestáveis pelos seus utilizadores do
que as anteriores, dada a fraca força com que se apresentam a esses últimos.
Todavia, por serem pouco percetíveis, podem furtar-se à sua avaliação por esses utilizadores.
O
aumento da literacia sociotécnica poderá, entretanto, deslocar essas
tecnologias para o 4º quadrante: o das tecnologias “persuasivas”. Onde se
dispõem aquelas cuja força é insuficiente para impedir o seu evitamento pelo
utilizador, e a sua visibilidade é suficiente para que este se aperceba delas –
p. ex. o risco contínuo pintado entre duas faixas de uma estrada.
Em
tempo de pré-campanha autárquica, assim saibamos desenhar e avaliar quaisquer
tecnologias urbanas, em particular as ditas “inteligentes”, conforme as
respetivas visibilidade e força de impacto sobre os utilizadores satisfaçam o
nível de contestabilidade que, democrática e participadamente, estabeleçamos
como padrão.
artigo (aqui revisto) atribuído ao Notícias de Aveiro, agosto/setembro 2021