Há pouco mais de um mês, a notícia da inauguração do Continente Labs
ocupou páginas interiores dos jornais. Mas as consequências de inovações como
essa passarão rápida e diversificadamente para as primeiras páginas.
Tecnologias "imersivas"
Como o nome indica, essa loja da Sonae MC constitui um laboratório. Nele se testa uma tecnologia que o filósofo Peter-Paul Verbeek (fotografia) designa “imersiva”: não apenas constitui parte do contexto da existência e ação humanas – como os sistemas tradicionais de ar condicionado etc. – mas tem iniciativa numa sua interação connosco.Assim, no supermercado Continente Labs, não existem caixas
de pagamento e respetivos funcionários. Uma vez que cada cliente descarregue no
seu smartphone a devida aplicação, esta máquina entra em comunicação com o
sistema autónomo da loja, o qual conjuga a informação recebida por centenas de
câmaras e sensores de prateleira, e cobra o crédito dos bens recolhidos pelo
cliente na conta bancária que este último terá associado à aplicação. Ou seja,
os sistemas bancário, de telecomunicações e da loja de retalho comunicam
autonomamente entre si, e realizam a operação de pagamento que corresponde à
ação humana – então apenas a da escolha e transporte dos bens.
Nesse laboratório, a reposição dos produtos ainda é feita
por agentes humanos. Mas já existem robôs capazes de desempenhar esta tarefa.
Tal como existem robôs sociais capazes de circular em quaisquer instalações
prestando informações ou fazendo sugestões em dezenas de línguas. E outros que
poderão acompanhar pessoas na rua, mantendo conversas enquanto transportam
compras etc.
As reações imediatas a notícias como essa visam habitualmente
as consequências das tecnologias autónomas no emprego, ou nas relações de cidadania
e poder político. Mas comecemos por atender ao que nelas nos é mais íntimo.
A mediação da tecnologia imersiva
Verbeek distingue essa imersividade como um dos modos
pelos quais a tecnologia medeia a relação entre o mundo e o ser humano. Como
Don Ihde e outros pensadores tinham enfatizado, essa mediação não é passiva.
Antes, os dois polos da relação são de cada vez modalizados pelo tipo de
mediação tecnológica. Ou seja, a primeira condição determinante dessa tríade
encontra-se no termo intermédio, o tecnológico, ao qual se ajustam os dois
extremos.
De um lado, o mundo, mediado imersivamente, deixa de se
constituir como alheio às intenções de cada agente humano. Utensílios e
elementos da Natureza deixam de evoluir simplesmente segundo os respetivos processos
físico-químicos ou biológicos. Aliás, o mundo deixa de se fragmentar por todos
esses inúmeros e heterogéneos elementos. Quanto mais o modelo do Continente
Labs se difundir, mais o mundo se disporá em função dos interesses humanos. Ou
melhor: em função dos interesses reconhecidos pelos algoritmos de aprendizagem
autónoma (não necessariamente apenas dos seres humanos). O mundo evoluirá assim
também segundo esta sua própria aprendizagem. E, nessa disposição de inúmeros
sistemas particulares em ordem a um conjunto de interesses, o mundo tenderá a
constituir-se, enfim, como uma composição una.
Quanto ao outro polo da mediação, com Louis e Mary Leakey
temos chamado “humano”, não apenas na espécie Sapiens mas desde a
espécie Habilis, àqueles entes capazes de produzir intencionalmente
artefactos úteis, entre os quais ferramentas para produzir outros artefactos, e
de os utilizar com proveito. Dessa utilização, porém, somos progressivamente dispensados
por tecnologias como esta produzida pela Sensei para a Sonae MC.
E o desenvolvimento dessas tecnologias, na medida em que as
empresas produtoras usem nesse processo IA com aprendizagem autónoma, há de ser
ainda significativo sobre o papel que nos restará na produção e inovação de
artefactos – até na escolha de listas de música ambiente em lojas autónomas, e já
mesmo na composição dessas músicas!
“Humana” – por enquanto (?) – resta, e urge, a escolha de
como serão implementadas tecnologias como esta.
in Gaia Semanário, 30/06/2021
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