Duas lições políticas da racionalidade tecnológica

A atividade política implementa o raciocínio meios-fins, que também carateriza a prática tecnológica. G.H. von Wright formulou-o assim: se se pretende Y, se X é causa de Y, se X é tecnicamente possível – acrescentemos: se X leva vantagem a eventuais alternativas – faça-se X. Neste mês de campanha eleitoral e consequentes escolhas políticas, vêm a propósito duas lições simples que podemos retirar da racionalidade tecnológica para a prática política.

1ª) A tecnocracia é uma ilusão – Ciclicamente aparecem apelos a um governo composto por técnicos; ou a presunção de políticos de que as respetivas propostas são inquestionáveis por serem fundadas tecnicamente e não em valores. Pretende-se assim que o poder (gr. krátos) caiba aos técnicos. É não compreender a técnica tal qual esta se faz.

Nomeadamente, não compreender como a qualquer função técnica – p. ex. transportar algum líquido –

não corresponde uma só estrutura técnica – p. ex. uma garrafa de refrigerante – e vice-versa. Como muito bem ilustrou a comédia Os Deuses Devem Estar Loucos (fotografia). Pelo que em cada design, em cada utilização de um artefacto, se escolhe que função corresponderá a que estrutura. E qualquer escolha efetiva implica necessariamente valores.

Além disso, a produção tecnológica não se abstrai não só de uma economia como mesmo de uma sociedade e da respetiva cultura. Por exemplo, alguns produtores automóveis podem partilhar a mesma escolha de produzir um modelo, digamos, para a classe média em detrimento de outras classes socioeconómicas. Mas os respetivos modelos distinguir-se-ão conforme cada produtor dedique mais recursos à satisfação do valor da fiabilidade, ou da performance, ou do conforto… O que dependerá das respetivas escolhas do público-alvo, e das escolhas de cada produtor sobre as competências de produção que terá desenvolvido até aí e que desenvolverá no curto prazo.

Em suma, a produção tecnológica implica escolhas – as “pretensões” de von Wright. E assim também os valores que as determinam. Não é na técnica, pois, que se inspiram os políticos ditos “tecnocráticos”.

2ª) A realidade importa – Se optarem pela combustão interna, qualquer daqueles produtores terá de incluir uma câmara de combustão. A lição anterior decorre do reconhecimento de que, em princípio, é possível desenhar mais do que uma estrutura física que realize essas funções de combustão e de transmissão da energia libertada. E, de facto, os designs de diversos componentes de motores de automóveis com a mesma potência, para o mesmo preço etc., normalmente são diferentes. Bem como as configurações dos motores em que se integram. No entanto a liberdade desses designs não é total.

Cada um destes tem de descrever uma estrutura física que realize a combustão que acione os pistões etc. Ou o carro só andará em descidas ou de empurrão. De modo que os respetivos designers não seriam afinal produtores de “auto-móveis”.

Os políticos, que somos todos nós, devemos retirar daí um aviso: nem todas as propostas funcionam. Infelizmente em política não há propriamente laboratórios de testes. Mas uma revisão da história dos países comparáveis compensa em parte essa falta. A história lembra-nos o chão onde temos os pés.


In Correio dos Açores, 07/10/2020

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