
Desde os primeiros meses deste ano vivemos num caleidoscópio de certezas absolutas
sobre a Covid-19, mesmo quando num dia se afirma o contrário do afirmado na
véspera. Ou da exigência dessa certeza, e em prazo curto, aos investigadores e
técnicos da área. Compreende-se a ansiedade. Mas só contribuiremos para os
melhores resultados que são possíveis se agirmos com literacia científica. Conformando-nos,
pois, a noções elementares como as seguintes.
Há vários tipos de conhecimento – com destaque para o necessaríssimo senso
comum! Mas, desde a Grécia Clássica, os conhecimentos melhor justificados, em
cuja aplicação mais podemos confiar, são do tipo chamado “científico”.
Nos séculos XVI e XVII esse tipo de conhecimento passou por uma “Revolução
Científica”. Os seus agentes assumiram um compromisso com o que se encontra no
mundo, tão livres quanto possível de enviesamentos religiosos, ideológicos ou morais
etc. Desde logo, no mundo material – mediante as ciências naturais. Desde o
séc. XIX, no mundo social – pelas ciências sociais e humanas que tenderam a
copiar as anteriores.
Os métodos de justificação, que visam eliminar os diversos enviesamentos,
tiveram de se ajustar a esse compromisso.
De Aristóteles manteve-se a prática da observação direta dos fenómenos que
compõem o mundo. A célebre luneta de Galileu marca porém o advento de uma
observação instrumental. Que aproxima a imagem de fenómenos demasiado distantes;
interpreta imediatamente fenómenos físicos (p. ex. o teste californiano às
mamites na nossa lavoura); e até constrói os objetos supostamente “observados”,
como no caso dos microscópios eletrónicos. Se a fiabilidade da observação
natural já dependia da capacidade da nossa perceção, memória, comunicação…
passou a depender também da precisão desses instrumentos.
Essas dependências complexificam a aproximação à objetividade. Além de que
é possível que o que observamos diretamente seja condicionado por fenómenos que
não alcançamos nessa observação (p. ex. bactérias e vírus). Em resposta, as
ciências Modernas têm implementado também outros dois métodos empíricos, que porém
supõem uma intervenção humana mais decisiva do que a mera mediação tecnológica.
Um deles é a experimentação: constrói-se artificialmente uma situação em
que interajam os fatores que se queiram considerar, tanto quanto possível
variam-se os valores de um fator enquanto se mantêm os dos restantes, e
comparam-se os efeitos no conjunto. Assim se poderá reconhecer caraterísticas
de um vírus.
O terceiro método é a simulação: por um lado, selecionam-se os elementos
que se julgam relevantes numa “parte do mundo”, e estabelece-se a regra da sua
interação, construindo um modelo do comportamento dessa parte do mundo. Por
outro lado, assume-se um estado de coisas nesses elementos – as condições
iniciais da simulação. “Corre-se” então o modelo a partir dessas condições e
verifica-se a que estados de coisas se chega. Por exemplo, qual a evolução do
contágio por um certo vírus largado num mercado chinês.
Estes dois métodos requerem enfim alguma forma de extrapolação dos respetivos
resultados, obtidos em processos simplificados segundo escolhas dos
investigadores, para o mundo que realmente habitamos.
A velocidade dos processos científicos, e o grau de certeza dos resultados,
são sempre proporcionais às condições do(s) método(s) implementado(s).
in Correio dos Açores, 01/08/2020
Sem comentários:
Enviar um comentário
Qualquer comentário cortês é bem-vindo, em particular se for crítico ou sugerir desenvolvimentos ao post.