Uma janela de 100 anos sobre a ciência contemporânea - O primado da razão
Faz este mês exatamente um século que Albert Einstein
publicou o artigo com um pormenor decisivo para a validade da teoria geral da
relatividade (publicada em 2015): a previsão de ondas gravitacionais na base
desta teoria. Daí o relevo que a comunicação social, em fevereiro passado, deu
à interpretação de uma certa medição como sendo a deteção de ondas gravitacionais.
Além do justo alvoroço nos meios estritos da física, esse processo parece-me
revelador do que são em geral as ciências modernas e contemporâneas.
Desde logo, sobre quão estas últimas têm vindo a
afastar-se da observação espontânea do mundo natural e das relações sociais, e
a privilegiar o exercício da razão.
Um tempo vs. muitos tempos
Einstein foi exemplo disso já com a teoria restrita da
relatividade, em 1905, face a um problema com as medições da velocidade da luz
– Pelo menos desde o best-seller Breve
História do Tempo, de Stephen W. Hawking (1988), não faltam ao leitor
apresentações avalizadas desse momento da história das ideias científicas,
ainda assim arriscarei apontar aqui alguns pontos seus:
De um lado, desde o séc. XVII se julga que a
velocidade da luz é finita. Segundo a mecânica clássica, a sua medição deveria
pois variar conforme o observador esteja estático em relação ao raio de luz, ou
se mover no mesmo sentido, ou se mover no sentido contrário – Como quando
avançamos numa estrada, nos parece mais rápido um carro A que vem no sentido
contrário do que um carro B que segue no mesmo sentido que o nosso.
De outro lado, no fim do séc. XIX mediu-se a
velocidade da luz em raios que se moviam em diversas direções e sentidos em relação ao movimento do observador. Mas o resultado obtido foi sempre o mesmo!
Havia duas pistas de resposta a este problema: alguma
coisa deturpava as medições; ou o quadro concetual clássico da medição do
movimento tinha que ser mudado. Alguns autores vinham tentando a primeira pista,
sem grande sucesso, quando Einstein (e o matemático e filósofo da ciência Henri
Poincaré) seguiu a segunda.
Limitando-se a prescindir de um pressuposto da
mecânica clássica: o de que haverá um tempo único para tudo o que compõe o
universo.
Segundo esse pressuposto, quer a duração da viagem de
cada um daqueles carros, quer a de um raio entre o Sol e a Terra, etc.,
ocorrerão em parcelas de um tempo absoluto. Quaisquer relógios (não de “marca
roscofe”!) mediriam assim o mesmo tempo entre o início e o fim de um mesmo movimento.
Já a medição das posições e trajetos no espaço depende
da relação entre o objeto e o observador – durante 30s., o espaço percorrido
pelo carro A relativamente ao nosso carro (aproximando-se de mais longe e
afastando-se para mais longe) é maior do que o espaço percorrido pelo carro B
relativo a nós.
Sendo a velocidade uma razão entre o espaço e o tempo
(km/h), se o numerador aumenta enquanto o denominador se mantém, o quociente
(valor da velocidade) aumenta.
Basta porém tomar tanto a medição do tempo quanto a do
espaço como dependendo da relação entre objeto e observador, para ser possível
manter esse quociente invariável. Precisamente o que a relatividade restrita
estabelece: se um carro se aproximar da velocidade da luz (como nenhum corpo
ultrapassará esta última, não há o risco de algum carro de polícia o apanhar), o
tempo dentro dele, medido a partir do passeio, dilata-se, ou passa mais
lentamente do que no passeio. Ao invés do espaço naquele carro, que se contrai.
Mais prudente do que eu concluir que “foi essa a
revolução de Einstein em 1905”, será sugerir ao leitor que verifique o esboço
anterior na literatura avalizada. Julgo porém que em parte nenhuma encontrará
não ter a teoria da relatividade constituído uma revolução nos quadros
racionais de explicação do movimento.
Força vs. geometria da
gravidade
Entretanto, para unificar a mecânica e o
eletromagnetismo (que inclui a luz), faltava àquela teoria explicar o movimento
de aproximação entre corpos – ex. o carro e o chão – ou de órbita – ex. a lua
em roda da Terra – ou mesmo entre corpos e a radiação – como os raios do Sol ao
passarem perto de Mercúrio ou Vénus antes de chegarem à Terra. Foi o que o
célebre físico propôs com a teoria geral da relatividade, em 1915.
A mecânica clássica permitia calcular essa aproximação,
designada por “gravidade”, mas não a explicava, apenas pressupondo que decorreria
de alguma força de atração. Para explicar aquele fenómeno – e mais uma vez prescindindo
do pressuposto de algo de cuja existência não havia qualquer sinal (o facto da
aproximação dos corpos é o que as teorias em causa pretendem explicar, não é
sinal direto de qualquer delas) – Einstein limitou-se a pensar esses movimentos
no espaço em conformidade às estruturas do ramo matemático que trata deste
tema: a geometria.
Na qual, já há perto de um século, se havia reconhecido
que só se conclui, por exemplo, que duas retas paralelas (aquelas que podem ser
cortadas por outra linha com a qual estabeleçam ângulos retos) não se cruzam,
se se pressupuser o caso particularíssimo do plano em que são traçadas não ser
curvo. Mas se este o for – como a superfície de uma esfera – é óbvio que se podem
cruzar – vejam-se os riscos tradicionais de uma bola de basquete. Importa
sempre pois começar por escolher os pressupostos sobre o tipo de plano em que
se trabalha.
Assim como sobre o tipo de espaço. Com efeito, tanto o
retângulo de uma folha estendida numa mesa quanto um retângulo recortado na
superfície de uma bola, têm apenas as dimensões de largura e comprimento. Para
conceber a curvatura do segundo retângulo é necessário recorrer a uma terceira
dimensão (profundidade). Consequentemente, pode-se conceber a curvatura do
próprio espaço em que se coloca a bola mediante alguma quarta dimensão. E assim
por diante em espaços cada vez com mais dimensões (estou em crer que aqui não
serei apenas eu a não conseguir imaginá-los).
Einstein avançou então a comparação entre esses
avanços da geometria e fenómenos físicos como órbitas ou a relação entre nós e
o chão. De facto, se este último for o de um elevador, a aproximação tanto é negada se o ocupante se elevam pelos cabos através de
alçapões no teto, quanto se os cabos quebrarem e
o elevador cair sob os pés do do ocupante.
Muito mais simples (ainda que para nós, comuns
mortais, menos intuitivo) do que postular uma força atrativa da qual não há
quaisquer evidências diretas, é assim conceber a “gravidade” como a relação
entre um corpo e o respetivo referencial (as paredes, chão e teto do elevador),
segundo a aceleração deste último em relação ao anterior.
E a conclusão, em 1915, foi que a lua se move à roda
da Terra, esta à roda do Sol, etc., simplesmente porque o espaço e o tempo em
volta dos corpos com massa compõem um referencial geométrico a quatro dimensões
(as três do primeiro mais a do segundo), não plano mas sim curvo. Assim como se
houvesse carris em roda da Terra de onde o comboio da lua não pudesse sair.
Junho de 1916: o requisito de justificação e as previsões
Até aí encontramo-nos apenas no campo lógico da
coerência das demonstrações geométricas e físicas. E da beleza delas e das
teorias resultantes, e do divertimento…
alternando com o desespero de quem se mete com elas.
Mas o conhecimento de tipo científico exige mais. São
necessárias “provas” de que aquelas teses explicam os fenómenos estudados
melhor do que quaisquer explicações alternativas.
Daí a importância que as ciências modernas deram às previsões: se se verifica o que uma teoria permitiu prever, essa teoria
funciona.
Daí o artigo de Einstein, em junho de 1916, fazendo
uma determinada previsão na base da sua teoria geral da relatividade.
Daí a importância da verificação dessa previsão, em
fevereiro passado: confirmou-se (não definitivamente!) a referida teoria.
Abrindo-se uma janela de 100 anos sobre um exemplo do
privilégio da razão nas ciências modernas e contemporâneas, em detrimento do
que nos é intuitivo pela observação natural.
Hei de reabrir nestas páginas a mesma janela sobre outras
caraterísticas dessas ciências.
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