No nosso quotidiano, desde a leitura deste jornal impresso ou online até a bebida de um café tirado de uma máquina, compreender a
tecnologia é esclarecer boa parte do que vivemos e somos. Ensaiaremos aqui esse esclarecimento aplicando a um caso que nos é próximo as 5 condições que Hans Radder (In and About the World, 1996) reconhece em quaisquer tecnologias. Sugerindo ainda a aplicação destas a sistemas não-materiais, como o da edição deste jornal.

Este caso ilustra assim a condição de se apresentar já
realizada, por alguém, em algum sítio, num certo momento, com que H. Radder começa por caracterizar a tecnologia em geral – sempre além pois de qualquer
teoria ou projeto de intenções.
Por outro lado, o referido estudo acentua a integração
sociotécnica das ordenhas móveis, desde o “conhecimento da população das
técnicas a utilizar na produção, do interesse para aprender novas tecnologias,
do nível de escolaridade…” (p. 11), até outras tecnologias correlativas, como a
demarcação das áreas de pastoreio com fio elétrico, ou os chassis, máquinas de
vácuo, tanques… cuja combinação – e esta foi a inovação tecnológica em causa –
resulta na ordenha móvel (v. p. 8). Ilustrando outra das caraterísticas que
Radder atribui à tecnologia: a sistematicidade, em ordem a uma função ou à
realização de alguma obra.
Este filósofo da Universidade de Amesterdão também
caracteriza a tecnologia pela heterogeneidade dos componentes combinados num mesmo artefacto –
igualmente ilustrada por aquelas máquinas de ordenha móveis.
As quais sugerem a divisão do trabalho entre quem
desenvolve a tecnologia (quaisquer produtores de ideias), quem a produz
(serralheiros), e quem opera com ela (lavradores) – outra caraterística da
tecnologia segundo Hans Radder.
A relação entre tecnologia e ciência
A relação entre tecnologia e ciência
O autor tem participado da crítica, e ultrapassagem, do
anterior modelo linear da relação da tecnologia com a ciência que colocava a primeira
em consequência da segunda. Naturalmente, Radder assume essa relação como uma 5ª caraterística da tecnologia. Mas não como mera ciência aplicada. Antes o
conhecimento tecnológico incorpora habilidades e técnicas operativas; além de
poder tomar os conhecimentos teóricos (ex. gravidade) não concetualmente em si
mesmos, mas mediante objetos ou acontecimentos que os incorporem (ex. a queda
habitual dos corpos). Autonomizando-se assim do conhecimento propriamente científico.
Apesar do sítio Ciência
Hoje estar (espero que só temporariamente!) indisponível, acrescento que
apontei ali o “cálculo experimental”, e a observação de estruturas naturais
(ex. plantas), com que o célebre eng. Edgar Cardoso desenvolvia os seus projetos
de pontes complexas e inovadoras sem se reduzir ao conhecimento físico e
químico.
Também o conhecimento implicado nas ordenhas móveis
não contradirá o científico – ex. as lavagens e desinfeções são articuláveis
com as teorias microbiológicas relevantes. Mas a exequibilidade (1ª
caraterística de Radder) daquela tecnologia não exige o domínio destas últimas
(estava bonito se assim fosse!). Nem mesmo o plano original destas máquinas de
ordenha terá requerido tal conhecimento concetual – bastaria notar o estrago do
leite em ordenhas cujas tubagens e tanques não fossem alvo de procedimentos
ditos de “esterilização” (registando-se apenas esses comportamentos, sem se
atribuir qualquer significado à palavra entre aspas). Assim como a montagem de
uma casa metálica sobre um chassis pode partir da mera observação de um camião,
sem qualquer compreensão sequer da mecânica clássica, etc.
Note-se que a anterior caracterização da tecnologia
não se compromete com alguma materialidade – como o metal, tubagens… que
constituem as ordenhas móveis.
Estas são assim tão “tecnológicas” quanto, por
exemplo, os sistemas de edição de um jornal. Visto serem executados – por certas pessoas, para outras pessoas, com os respetivos conhecimentos teóricos e práticos, os respetivos valores e decisões correspondentes, etc.
Certamente heterogéneos. Com divisões do trabalho. E relacionados a teorias científicas – psicológicas, etc., as quais porém também tomam as experiências como base de observação, sendo ainda aquelas teorias "filtradas" e moduladas pelos jornalistas durante a prática desta atividade.
Em suma, a tecnologia não é uma mera aplicação de conhecimentos científicos. É antes constituída por um complexo que inclui fatores muito heterogéneos (entre os quais esses conhecimentos, mas também outros obtidos no próprio processo técnico, além ainda pontualmente do senso comum). E é desse complexo que depende o sucesso de qualquer tecnologia, desde o fio elétrico e ordenhas móveis até máquinas de café e a edição de jornais.
P.S.
– Agradeço a Susana Carvalho as fotografias de ordenhas móveis que tirou e me
enviou, ao saber que eu pretendia tomar essa tecnologia como caso de estudo
nestas crónicas, agradecendo mais ainda a intenção com que o fez.
1ª versão in: Correio dos Açores, 12/01/2016
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