O Plano de Recuperação e Resiliência e o caso da mecanização da ordenha em São Miguel

O governo português propõe-se aplicar o apoio financeiro da UE à recuperação desta crise – 16.643M€ (além do Quadro Financeiro Plurianual 2021/2027) – conforme o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Este Plano divide-se em três Dimensões: Resiliência (versa os seis Pilares Relevantes de Política da UE), Transição Climática e Transição Digital. Em particular nas duas últimas Dimensões, o PRR poderá ser implementado pela coordenação de um número indeterminado de utilizadores de certos artefactos técnicos segundo regras comuns. Ou seja, pelo desenho e promoção de “sistemas sociotécnicos”.

Deveremos assim todos, tanto os governantes e os deputados que politicamente sustentam os primeiros, quanto especialmente os cidadãos que política e financeiramente sustentam os órgãos públicos e assim as decisões de quem os ocupa, ter em conta o que se tem verificado em casos como o da mecanização da ordenha na ilha de São Miguel nas décadas de 1970-1980[1].

Sobre o desenho e implementação desses sistemas, alguns autores argumentam que isso se processa eminentemente top-down. Ou seja, segundo um plano delineado por uma equipa, decidido por quem tem o respetivo poder, e aplicado por funcionários. É plausível que muitos assumam hoje o PRR nesse sentido. Outros autores, porém, argumentam que o desenho efetivo de inúmeros sistemas sociotécnicos tende a ser estabelecido bottom-up: conforme uma auto-organização espontânea entre os diversos participantes.

Entre uma e a outra posição teórica, a mecanização da ordenha em São Miguel ilustra a possibilidade de se delinear um plano de inovação tecnológica – isto é, de introdução de novos artefactos e/ou práticas técnicas – de esse plano ser unanimemente aprovado pelos peritos, mas, assim que o sistema começar a ser implementado, de o seu desenho evoluir (bottom-up) numa direção diferente à do plano proposto. Para alguma planificação top-down, todavia, ser implementada numa fase ulterior de retificação e desenvolvimento desse outro sistema.

Concretamente, desde o fim da década de 1960 até meados da década seguinte, os peritos acordaram num modelo de estabulação do gado leiteiro, com equipamentos de ordenha mecânica montados em salas fixas desenhadas para o efeito. No fim da década de 1970 contavam-se nos Açores 540 equipamentos mecânicos com essa função. Dos quais, porém, apenas 15 eram fixos (nt. 1, p. 504). E em 1989, em São Miguel, havia 18 equipamentos fixos e 616 máquinas móveis de ordenha (nt. 1, tabela 3). Como bem sabe qualquer pessoa que cruze as estradas desta ilha, esse último desenho foi o que efetivamente se implementou.

Considerando casos como esse, é prudente que o PRR inclua um mecanismo de monitorização da sua implementação. Não se presumindo, ingenuamente, que a inovação sociotécnica se reduz naturalmente a qualquer desenho prévio a régua e esquadro. Essa aliás é a primeira garantia possível (?) de que esse plano terá algum sucesso, ainda que porventura não se efetive conforme previsto.


[1] V. “O design de sistemas sociotécnicos e a ordenha mecânica móvel em São Miguel (Açores)”, Atlântida (IAC), vol. 65, 2020, pp. 489-512. Nas nt. 13 e 29 encontram-se referências a outros estudos de casos de design e promoção de sistemas sociotécnicos. 


a publicar ainda no período de Consulta Pública do PRR,

Correio dos Açores, 27/02/2021

A Covid-19 e o “enviesamento do crescimento exponencial”

Há um ano, enquanto chegavam notícias da expansão da Covid-19 aos primeiros países europeus, a saúde pública portuguesa continuava regular. Só mais tarde apareceram aqui os primeiros casos, e poucos. Mas, a 14 de março, a ministra da saúde reconheceu que o crescimento da pandemia no país se tornara exponencial. E na segunda quinzena desse mês, segundo dados da Johns Hopkins University, estivemos nos primeiros lugares mundiais nesse parâmetro (segundo os números conhecidos, claro).

Esse tipo de crescimento é ilustrado pela história do pedido do matemático indiano Sessa Ibn Daher ao seu soberano, quando este o quis premiar pela invenção do jogo do xadrez: um grão de trigo na primeira casa do tabuleiro, dois na segunda, quatro na terceira, oito… sempre duplicando até à 64ª casa. O soberano logo aceitou, mas, quando calcularam a riqueza assim indicada, o reino inteiro não a valia. Em troca, num crescimento linear o aumento é sempre aproximadamente o mesmo – p. ex. em cada nova casa do tabuleiro acrescentar-se-ia 1 kg. de trigo; nos momentos iniciais o aumento pode ser maior, mas depois o crescimento linear é incomensuravelmente ultrapassado pelo exponencial.

Alguns de nós partilhámos então os números da Johns Hopkins, como alerta de alguma particular vulnerabilidade portuguesa à doença, e do perigo de um súbito pânico social se o processo continuasse.

Muitos mais, porém, logo se ergueram em defesa da abordagem linear. Na qual os números absolutos portugueses, e a sua taxa em relação à nossa população, ainda eram inferiores aos de países onde a pandemia começara mais cedo. Daí a tese do “milagre português”.

Cuja defesa justificará antes a tese de David Robson em “Exponential growth bias: The numerical error behind Covid-19” (BBC Future, 13/08/2020): muitas pessoas, mesmo entre as que frequentaram matemática no ensino superior, tendem a perspetivar qualquer crescimento como o soberano de Sessa Ibn Daher. E este erro matemático está a “custar vidas”.

Em abril de 2020, felizmente, um qualquer fator terá compensado essa vulnerabilidade portuguesa – se esta foi o frio mas sem chegar à congelação das gotículas, terá sido a primavera; se se encontrava em certos hábitos de socialização, então o confinamento…

Pelo que a ministra da saúde e os seus pares puderam dispensar-se de interpretar as palavras dela. E, com o referido apoio social, passaram o verão e abordaram o natal como um homem que acordasse com o alarme da casa a tocar, saltasse da cama, mas entretanto o alarme se silenciasse. E o homem, em vez de inspecionar a casa, se voltasse a deitar sem ao menos encostar uma cadeira à porta do quarto e ajeitar um taco de basebol ao lado da cama.

Voltando agora as temperaturas do inverno português, ou no natal os nossos hábitos sociais… o resultado está a ser o expectável. Este texto, portanto, é uma crónica de muitas mortes anunciadas.

Mas depois dos tempos, tempos vêm. Para os quais deveremos reter a lição do citado especialista em neurociências e psicologia contra o enviesamento do crescimento exponencial. Contra, afinal, a dramática iliteracia científica.


in: Correio dos Açores, 06/02/2021

O pensamento técnico e o desafio português

Quando se fala em “tecnologia”, ocorrem-nos habitualmente objetos com utilidade prática – computadores, esferográficas… No entanto, aquele t...