A "intimidade" das novas bicicletas e a 3ª década deste século

Neste ano que fechou a segunda década do século, foi apresentado mais um protótipo significativo das tecnologias da década que começou ontem. E assim também sobre o modo de ser humano e do mundo que serão intermediados por tais tecnologias.

É o caso da ebike Ena, depois da Ava e da Ari, apresentadas pelo Exertion Games Lab na Austrália. O segundo destes protótipos aumenta a experiência humana de operacionalizar uma bicicleta, produzindo sons (como um motor de combustão em aceleração) e luzes de alerta, em correspondência ao movimento do corpo (em aceleração, mais inclinado) ou do conjunto (e.g. quase parado no trânsito urbano). Já a ebike Ari acelera o motor elétrico de compensação, ou aconselha sonoramente o ciclista para reduzir a velocidade, de modo a apanhar o maior número de “verdes” nos semáforos com que se cruzará, a cujo sistema a bicicleta tem acesso. Enfim, a Ena EEG (eletroencefalograma) inclui um capacete com elétrodos que informam o artefacto se o ciclista se encontra no estado de atenção periférica, por exemplo gozando a paisagem, e a bicicleta corresponde aumentando o reforço do motor elétrico, ou se o ciclista se encontra focado, por exemplo no movimento de outro ciclista próximo, e o motor reduz a comparticipação de forma que o condutor tenha mais controlo sobre o conjunto.

Esses protótipos exemplificam as condições da tecnologia “acerca de nós” e “entre nós”, que R. van Est (Instituto Rathenau) referiu no relatório IntimateTechnology – The battle for our body and behaviour, sobre a era civilizacional que já então (2014) se abria. Respetivamente, recolhendo e facultando informação sobre os seres humanos – como o algoritmo de reconhecimento facial que informa se uma mulher se encontra num período fértil (o que ela própria pode não saber). E gerindo as relações humanas mediante tecnologias. Por exemplo, ainda recentemente o algoritmo do Facebook sobrepôs a sua seleção das mensagens na minha cronologia dessa rede social às preferências que eu aí tinha explicitamente determinado. Ao ponto de me restar escolher entre ser (numa pequena parte) quem viveria as relações que ele me selecionaria, ou fechar a página e eventualmente abrir outra, mas então escolhendo “amigos”, “likes”, aberturas de hiperligações etc., de modo a não sugerir aquele comportamento do algoritmo – que assim me condiciona nessas escolhas.

O referido relatório refere ainda as novas condições da tecnologia “em nós” e “como nós”. Por exemplo, uma pequena pílula com um foco de luz, uma câmara, um transmissor e uma bateria incorporados, que o paciente engole em substituição de se submeter a uma endoscopia. Em 2014 preparava-se um algoritmo que interpretasse essa informação, já então disponível para análises ao esófago. Por outro lado, os “robôs sociais” são capazes de interpretar as nossas emoções mediante reconhecimento facial, e de ajustar as palavras e tonalidade dos sons que nos dirigem.

Neste novo ano, quereremos respostas para as questões éticas, políticas e jurídicas que essa intimidade da tecnologia nos coloca. E, mais radicais, para as questões ontológicas sobre os novos modos de ser humano e do mundo que assim experimentaremos.


in Correio dos Açores, 03/01/2021

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