5 Caraterísticas gerais das tecnologias - um caso açoriano

No nosso quotidiano, desde a leitura deste jornal impresso ou online até a bebida de um café tirado de uma máquina, compreender a tecnologia é esclarecer boa parte do que vivemos e somos. Ensaiaremos aqui esse esclarecimento aplicando a um caso que nos é próximo as 5 condições que Hans Radder (In and About the World, 1996) reconhece em quaisquer tecnologias. Sugerindo ainda a aplicação destas a sistemas não-materiais, como o da edição deste jornal.

Um caso açoriano

Tomemos o caso das ordenhas móveis - apresentadas por Fátima Amorim et al., no abrangente apesar de pequeno estudo para a IDEASS, como “uma inovação açoriana” (p. 1). Aliás, “a inovação mais interessante no maneio das vacas leiteiras nos Açores (…) constituindo a base deste modelo produtivo” (p. 8). Os autores não sustentam esta sua última afirmação. Mas, intuitivamente, pelo menos não nos é difícil reconhecer às ordenhas móveis “uma grande vantagem nas zonas em que as explorações agrícolas possuem terrenos com muitas parcelas, dispersas por vários locais” (ibid.).
Este caso ilustra assim a condição de se apresentar realizada, por alguém, em algum sítio, num certo momento, com que H. Radder começa por caracterizar a tecnologia em geral – sempre além pois de qualquer teoria ou projeto de intenções.
Por outro lado, o referido estudo acentua a integração sociotécnica das ordenhas móveis, desde o “conhecimento da população das técnicas a utilizar na produção, do interesse para aprender novas tecnologias, do nível de escolaridade…” (p. 11), até outras tecnologias correlativas, como a demarcação das áreas de pastoreio com fio elétrico, ou os chassis, máquinas de vácuo, tanques… cuja combinação – e esta foi a inovação tecnológica em causa – resulta na ordenha móvel (v. p. 8). Ilustrando outra das caraterísticas que Radder atribui à tecnologia: a sistematicidade, em ordem a uma função ou à realização de alguma obra.
Este filósofo da Universidade de Amesterdão também caracteriza a tecnologia pela heterogeneidade dos componentes combinados num mesmo artefacto – igualmente ilustrada por aquelas máquinas de ordenha móveis.
As quais sugerem a divisão do trabalho entre quem desenvolve a tecnologia (quaisquer produtores de ideias), quem a produz (serralheiros), e quem opera com ela (lavradores) – outra caraterística da tecnologia segundo Hans Radder.

A relação entre tecnologia e ciência

O autor tem participado da crítica, e ultrapassagem, do anterior modelo linear da relação da tecnologia com a ciência que colocava a primeira em consequência da segunda. Naturalmente, Radder assume essa relação como uma 5ª caraterística da tecnologia. Mas não como mera ciência aplicada. Antes o conhecimento tecnológico incorpora habilidades e técnicas operativas; além de poder tomar os conhecimentos teóricos (ex. gravidade) não concetualmente em si mesmos, mas mediante objetos ou acontecimentos que os incorporem (ex. a queda habitual dos corpos). Autonomizando-se assim do conhecimento propriamente científico.
Apesar do sítio Ciência Hoje estar (espero que só temporariamente!) indisponível, acrescento que apontei ali o “cálculo experimental”, e a observação de estruturas naturais (ex. plantas), com que o célebre eng. Edgar Cardoso desenvolvia os seus projetos de pontes complexas e inovadoras sem se reduzir ao conhecimento físico e químico.
Também o conhecimento implicado nas ordenhas móveis não contradirá o científico – ex. as lavagens e desinfeções são articuláveis com as teorias microbiológicas relevantes. Mas a exequibilidade (1ª caraterística de Radder) daquela tecnologia não exige o domínio destas últimas (estava bonito se assim fosse!). Nem mesmo o plano original destas máquinas de ordenha terá requerido tal conhecimento concetual – bastaria notar o estrago do leite em ordenhas cujas tubagens e tanques não fossem alvo de procedimentos ditos de “esterilização” (registando-se apenas esses comportamentos, sem se atribuir qualquer significado à palavra entre aspas). Assim como a montagem de uma casa metálica sobre um chassis pode partir da mera observação de um camião, sem qualquer compreensão sequer da mecânica clássica, etc.
Note-se que a anterior caracterização da tecnologia não se compromete com alguma materialidade – como o metal, tubagens… que constituem as ordenhas móveis.
Estas são assim tão “tecnológicas” quanto, por exemplo, os sistemas de edição de um jornal. Visto serem executados – por certas pessoas, para outras pessoas, com os respetivos conhecimentos teóricos e práticos, os respetivos valores e decisões correspondentes, etc. Certamente heterogéneos. Com divisões do trabalho. E relacionados a teorias científicas – psicológicas, etc., as quais porém também tomam as experiências como base de observação, sendo ainda aquelas teorias "filtradas" e moduladas pelos jornalistas durante a prática desta atividade.
Em suma, a tecnologia não é uma mera aplicação de conhecimentos científicos. É antes constituída por um complexo que inclui fatores muito heterogéneos (entre os quais esses conhecimentos, mas também outros obtidos no próprio processo técnico, além ainda pontualmente do senso comum). E é desse complexo que depende o sucesso de qualquer tecnologia, desde o fio elétrico e ordenhas móveis até máquinas de café e a edição de jornais.

P.S. – Agradeço a Susana Carvalho as fotografias de ordenhas móveis que tirou e me enviou, ao saber que eu pretendia tomar essa tecnologia como caso de estudo nestas crónicas, agradecendo mais ainda a intenção com que o fez.

1ª versão in: Correio dos Açores, 12/01/2016

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