O sonho da Miss Nova Orleães e uma bioética para o séc. XXI (2)

Na crónica precedente (11/11/2015) lembrei o sonho de certa Miss Nova Orleães de ter um filho com Einstein, na expetativa de juntar a beleza dela e a inteligência deste… Também lembrei a resposta do cientista.
E, referindo dois prémios Breakthrough para as ciências da vida, mencionei as transformações da espécie humana que estão ficando ao nosso alcance graças ao poder tecnocientífico das NBIC – nanotecnologias, biotecnologias, informática, e ciências cognitivas (neurociências, inteligência artificial, robótica).
Argumentei que o mais sensato será usar esse poder com alguma limitação. Resta saber qual.
Foi a propósito desta questão que concluí essa outra crónica introduzindo a atual: “enquanto porém apenas perspetivamos essa revolução das NBIC, temos de lidar hoje com uma outra revolução que parece estar em curso nos próprios alicerces de qualquer resposta ao que temos vindo a tratar”.
Da herança moderna…
Com efeito, na segunda metade do séc. XX, foram estabelecidas normas como o princípio da responsabilidade – Não ponhas em perigo a continuidade de uma vida autenticamente humana sobre a Terra – proposto pelo filósofo e militar sionista Hans Jonas. Ou como o princípio da autonomia (permissibilidade) – Não faças ao outro o que ele não faria a si mesmo, e faz-lhe só o que ele permitir – mais o da beneficência – Faz ao outro apenas o bem – formulados pelo médico e filósofo norte-americano H.T. Engelhardt.
Essas normas são formais, pois não determinam o que seja afinal uma “vida autenticamente humana”. Nem, em concreto, o que “não faças ao outro”, ou que “bem” se deve fazer (Engelhardt remete a determinação deste último para cada cultura). Na esteira do filósofo alemão Immanuel Kant (séc. XVIII), essa ética não aponta assim o que é bom e o que é mau – como por exemplo apontam os 10 Mandamentos – apenas determina o processo por conformidade ao qual qualquer ação será considerada “boa”.
Aliás, logo Fritz Jahr no seu artigo de 1927 fundador da bioética, colocou este campo multidisciplinar na esteira kantiana ao alargar o imperativo formulado pelo filósofo setecentista a todos os seres vivos. Cada um dos quais deverá então ser tomado, tanto quanto possível, não como um meio (ou mero instrumento) mas como um fim em si mesmo.
Ainda que alguns desses princípios tenham origem na Grécia Antiga, ou na Idade Média, a bioética do século passado é assim eminentemente uma herança da Modernidade.
Voltemos porém ao filho com que uma Miss do séc. XXI poderá sonhar. Como se lhe aplicará o princípio da autonomia? Apesar de o primeiro dos seus pais (Einstein) ter advogado que o espaço-tempo é curvo, pelo que alguém se poderá pergunatar se a linha do futuro pode vir a desembocar no passado (!), ainda não temos maneira de receber agora a permissão do futuro jovem para que assim o geremos.
Quanto ao princípio de Jonas, leva-nos de volta à pergunta pelo que é próprio da existência humana. Por exemplo, em caso do pequeno se revelar um bully, continua “humano” se lhe substituirmos o sistema límbico por um programa de inteligência artificial que promova a socialização? E se lhe aplicarmos um pacote das NBIC por inteiro?
…até um novo realismo bioético?
Entretanto, no início deste séc. XXI e em paralelo a tais desafios tecnocientíficos, a filosofia e a cultura em geral estão a esboçar uma alternativa à herança moderna. Designadamente, a partir da crítica à conceção construtivista do conhecimento.
Segundo essa última conceção somos equivalentes, por assim dizer, aos habitantes da bela Cidade das Esmeraldas em O Feiticeiro de Oz: vemo-la verde não porque ela o seja, mas porque usamos óculos desta cor. As caraterísticas de tudo o que conhecemos serão assim construções mentais nossas.
No séc. XX, os pós-modernos conservaram a tese de alguma espécie de óculos mentais, mas acrescentaram que se uns habitantes constituem a cidade como sendo de esmeralda, outros verão rubi… e outros nem sequer lhe darão cor, concebendo-a antes toda, digamos, em fá maior. Foi aliás o respeito por essa diversidade cultural que levou Engelhardt a dar prioridade ao seu princípio da autonomia.
Em qualquer caso, como Kant argumentou, do que essa cidade – ou seja, do que o homem, etc. – possa ser, nada saberemos. E a bondade das nossas ações não pode ser determinada em relação a algo de que nada se sabe. Antes dependerá da intenção com que as fazemos – a de respeitar normas formais como as atrás mencionadas.
Ao contrário, os realistas sempre sustentaram que a tal cidade pode não ser exatamente do tom verde como a vemos. Mas tem alguma caraterística que nos obriga a reconhecer-lhe cor, e esta será de algum tom que os seres humanos sentem como "esverdeado". Ou seja, há uma realidade independente dos sujeitos. Os nossos conhecimentos são verdadeiros, ou falsos, conforme se lhe reportem ou não. E as nossas ações – ex. as manipulações possíveis com as NBIC – são boas, ou más, conforme respeitem e potenciem essa realidade, ou a destruam.
Esse realismo é defendido pelo filósofo italiano Maurizio Ferraris no seu Manifesto do Novo Realismo (2012) – sintetizando várias obras suas anteriores, como Adeus, Kant (2009). Um “adeus” partilhado pelo francês Quentin Meillassoux, em obra também de 2012. Pelo menos numa subordinação do construtivismo kantiano ao cuidado com a realidade, como creio dever ser interpretado o best-seller Porque o Mundo Não Existe do alemão Markus Gabriel, ainda em 2012 (este parece ter sido o annus mirabillis do novo realismo).
Falta, no entanto, desenvolver esses quadros teóricos, considerando desde o facto de a diversidade cultural reconhecida por H.T. Engelhardt, até aos resultados de investigações como a de Svante Paabo – cujo prémio Breakthrough, entregue no dia 8 deste mês, motivou o presente esboço de reflexão. Desenvolvendo-os até serem suficientemente potentes para neles conseguirmos decidir sobre a possibilidade de manipulações como as que mencionei na crónica precedente. E que isso aconteça a tempo de mantermos o controlo sobre elas… em vez de por elas sermos submergidos.



in: Correio dos Açores
, 17/11/2015

O sonho da Miss Nova Orleães e uma bioética para o séc. XXI (1)

Conta-se que, face à aspiração de certa Miss Nova Orleães por um seu filho com Einstein, pela expetativa dela de acrescentar à sua beleza a inteligência do cientista, este, prudentemente (ainda que confessando o apetite pela experiência!), lembrou a possibilidade de a criança sair antes ao pai na beleza, e à mãe na inteligência.
A cautela percebe-se, pois, à época, a tecnologia de seleção artificial na evolução das espécies ainda não tinha progredido substancialmente desde a revolução neolítica. A saber, a escolha dos animais reprodutores e de sementes, as técnicas de enxerto de plantas… estendidas recentemente ao transporte de sémen e à fecundação artificial. Todas essas técnicas facilitavam a transmissão de umas informações em detrimento de outras. Mas a informação disponível era sempre a que a natureza facultasse.
Hoje, 12.000 anos depois do início do Neolítico, uma nova revolução se afigura vir quebrar essa limitação. E uma revolução de outra natureza ainda se afigura vir enquadrar a anterior.
Os prémios Breakthrough e as NBIC
Um sinal, e fator potenciador, da primeira destas duas revoluções em curso são os últimos dois prémios Breakthrough de ciências da vida.
Em novembro de 2014 (no prémio para 2015) foi distinguida a tecnologia CRISPR-Cas9, por ter
tornado simples e económica a manipulação genética. Se bem a percebi (apesar de mal tentar pronunciar o seu nome) essa tecnologia é constituída pelo isolamento – ou fabricação laboratorial – de pequenos segmentos de ARN (molécula mensageira da informação do ADN) correspondentes aos genes que se vise (ex. os responsáveis pelo narigão do nosso Albert) no código de uma dada célula. Seguido da integração daqueles segmentos em enzimas Cas-9, juntamente com genes (agora os do lindo nariz da Miss) alternativos aos visados. Para, uma vez no núcleo celular, as enzimas cortarem os cromossomas nos locais de correspondência entre o ADN e o ARN, deixando nesse espaço os genes alternativos. (Uma boa ilustração encontra-se neste vídeo).
A propósito de genes alternativos, lembremos que, nesse mesmo ano, uma equipa do instituto Scripps (Califórnia) conseguiu que células com duas “letras” genéticas além das quatro naturais se reproduzissem. Aqueles genes alternativos já nem terão portanto de ser apenas naturais – talvez possamos copiar os dos habitantes do planeta Vulcano!
Esses avanços tecnocientíficos situam-se no campo “B” das atuais NBIC – nanotecnologias, biotecnologias, informática, e ciências cognitivas (neurociências, inteligência artificial, robótica). A eles se adicionarão entretanto todos os avanços que paralelamente vão acontecendo nos restantes campos.
E a soma começará a aproximar-nos, para aquém da ficção, de beldades que além de terem no seu ADN genes que lhes permitam tratar por “tu” a E=mc2, poderão ter, digamos, os genes de Justin Bieber e de Cristiano Ronaldo para as respetivas artes, outros que garantam poderes mentais de Mr. Spock… Além de que – segundo esperanças que os transhumanistas hoje têm por plausíveis – viverão durante vários séculos, podendo tornar-se em toda a sorte de cyborgs, para quem a reprodução sexuada poderá ser coisa do passado. com Einstein, não sei se gosto da ideia.
Ou, pelo menos, aproxima-nos da sua possibilidade real.
Deixará esta de ser “humana”? Depende do que julgamos caraterizar o homem. Ora, a obra pela qual neste último domingo (08/11/2015) Svante Paabo foi um dos agraciados com o prémio Breakthrough para as ciências da vida 2016, constitui precisamente um importante contributo para uma resposta genética a essa questão.
Concretamente, pela comparação entre ADN com dezenas de milhares de anos, provindos dos modernos humanos, de Neandertais, e de “primos” nossos já extintos. Porventura se isolará assim as condições genéticas do que chamamos “homem”.
A questão bioética e a pista da sensatez
Independentemente do êxito que possa vir a ter essa última investigação no Instituto Max Planck para a Antropologia Evolucionista, a questão-chave porém é a seguinte: com o poder que estamos a conquistar mediante as NBIC, o que vamos fazer do homem?
Aliás, o que vamos fazer de novas espécies hominídeas? Para as quais o homo sapiens poderá vir a estar tal como o homo habilis está hoje para nós e para as restantes (entretanto extintas) espécies do género homo. Uma diversidade específica que há de ser proporcional à diferença do poder tecnocientífico e económico entre as comunidades de sapiens que, por estes tempos, deitem mãos a essa obra – i.e. uns serão os descendentes do sapiens americano, japonês, alemão… outro será o da África subsaariana (de pet a escravo, passando por rato-de-laboratório, viveiro de órgãos para transplante, etc., imagine-se os destinos que os primeiros darão ao segundo).
Em geral, são possíveis três pistas de resposta a questões como essas:
Por um lado, deve-se realizar tudo o que for tecnicamente possível. Este princípio decorre da chamada “conceção engenheiril” da técnica, a qual assume o homem essencialmente como homo faber. Ou como um demiurgo que enfim assume as rédeas da sua própria criação.
Por outro lado, devem-se respeitar os processos naturais, entre os quais o da evolução humana. Assume-se então a chamada “eco-ética”, seja reconhecendo um valor último à Natureza (panteísmos…), seja por julgá-la não como mero recurso do homem, mas como legado ao cuidado deste (Catolicismo…).
Mas o facto é que há muito o homem interveio na dita “natureza”. Desde a quase completa humanização da paisagem da ilha onde escrevo estas linhas, até à duplicação da esperança média de vida humana na Europa no último século e meio. A eco-ética pode apenas reportar-se a uma utopia orientadora, já não a um plano de objetivos a cumprir.
Essas intervenções, todavia, nunca deixam de gerar receios. Quando não geram logo resultados tão terríveis quanto fora antes pacífico o uso das suas causas – experimente o leitor googlar “talidomida”.
Daí que a pista sensata para respondermos à referida pergunta, por um terceiro lado, parece ser a intermédia àqueles dois extremos.
Enquanto, porém, apenas perspetivamos essa revolução das NBIC, temos de lidar hoje com uma outra revolução que parece estar em curso nos próprios alicerces de qualquer resposta ao que temos vindo a tratar. A qual abordaremos na próxima crónica.



in: Correio dos Açores
, 11/11/2015

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