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Os açorianos e a "segunda era da máquina" (2)

Na semana passada recebi uma série de notícias do atentado em Barcelona, enquanto não fazia ideia do que pudesse estar a acontecer ao meu vizinho. É mais um exemplo da nossa participação na “sociedade global” definida por Niklas Luhmann.
Participação esta que nos sujeita a uma revolução que se poderá tornar maior do que qualquer outra já experimentada pela humanidade. A cumprir-se provavelmente no tempo de vida das gerações nascidas nas décadas de 80 ou de 90 do século passado, se não já durante a reforma das gerações de 60 ou de 70.
Inteligência artificial – do desemprego ao alerta de Hawking
Designadamente, a passagem de uma sociedade conforme à produção mediante a operação de ferramentas e máquinas e até a programação destas últimas, para outra sociedade conforme a máquinas capazes de aprendizagem e de autoprogramação – v. “A ‘segunda era da máquina’... (I)”, que o leitor tem à distância de alguns toques no seu smartphone (e onde com um só toque pode abrir a obra em que Brynjolfsson e McAfee cunharam a expressão que intitula estas duas crónicas).
Aquele texto precedente visou o efeito dessa revolução no mercado de trabalho: o fim de muitos postos de trabalho que requerem diversas inteligências, depois da anterior Revolução Industrial ter extinguido tantos outros que requeriam força física, ou a repetição de alguns gestos.
Além das previsões sobre o tipo de empregos que restarão aos homens, e as caraterísticas profissionais que estes terão que ter, começam-se a propor à discussão diversas respostas gerais a essa próxima transformação. Por exemplo, a instauração de um rendimento universal que distribua pela população a riqueza criada por máquinas.
Proposta esta a que alguns contrapõem a desintegração social entre os poucos que tenham algum controlo sobre esse sistema de máquinas, e a multidão dos restantes pensionistas. Com uma eventual desmoralização da sociedade nesse seu desligamento das organizações produtivas (cf. civilização Romana). Enquanto Stephen Hawking alerta que sistemas de máquinas inteligentes, visando, como lhes é próprio, a eficiência acima de tudo, poderão classificar tais multidões como excedentárias ou até parasitárias – se os nazis, que não deixavam de ser homens, fizeram o que fizeram a quem classificaram como parasitas, imagine-se o que as máquinas poderão fazer.
O que parece claro é que não será apenas o mercado laboral, mas sim toda a sociedade, ou até o próprio modo humano de ser, que será condicionado por essa revolução.
Na qual deverá haver vencedores e perdedores (sempre os tem havido em todas revoluções). Para então prepararmos os nossos jovens de forma que a sociedade açoriana venha a ser dos primeiros e não dos segundos, e, mais ainda, para que já hoje não nos constituamos como meros prolongamentos de máquinas, importa compreendermos que a “sobrenatureza” não substitui a natureza.
“Sobrenatureza”, “senhores do ar”
Como realça o filósofo da ciência e da tecnologia Javier Echeverría, desde a pré-história até ao fim do séc. XIX as relações sociais ocorreram em espaços demarcados em interior, fronteira e exterior, com um forte peso da presencialidade física. Mas com o telégrafo, depois o telefone por fio, a rádio… e definitivamente com os smartphones e tablets ligados à Internet, estabeleceu-se uma “sobrenatureza” cujo espaço e tempo são determinados apenas pela facilidade/dificuldade de acesso à comunicação.
Nesse espaço e tempo virtuais, o poder já não decorre da posse da terra, de fábricas… mas da tecnologia de informação, desde os satélites aos motores de busca. Echeverría chama por isso “senhores do ar” a quem os controla.
Creio que um bom exemplo será o dos programadores do Googlebot (programa que determina a ordem de prioridade dos links que correspondem a cada busca no Google), e mais ainda dos seus patrões. Os quais delimitam efetivamente o mundo dos milhões de pessoas que façam cada busca. Visto raramente abrirmos links que apareçam na segunda ou terceira página que respondem a uma busca. E porque, para tantos hoje, o que é real é o que, como se diz, “está na Internet”.
De forma que muitas vezes pouco mais seremos do que carne, com perceções, emoções… mas nenhuma consciência crítica e livre, que prolonga os teclados e monitores dessas máquinas regidas por algoritmos e pelos interesses dos “senhores do ar”.
Não é difícil imaginar que os que a isso se habituarem serão os primeiros candidatos ao rótulo de “parasita” num mundo em que a operação das máquinas prescinda de tais prolongamentos. E são também os que menos serão agora capazes de evitar que a história social e tecnológica siga este rumo.
Literacia tecnológica
Os vencedores da revolução sociotecnológica que se anuncia deverão ser antes os que agora assumirem a última destas três posições: i) uma tentativa de travar a evolução das máquinas de segunda era – quais luditas do séc. XXI. Ou ii) uma imersão, inconsciente e ingénua, no fluxo histórico que eventualmente ali nos leve. Ou iii) uma utilização diária das máquinas – como os computadores em que lemos notícias de Barcelona, etc. – mas numa compreensão do que lhes é próprio como máquinas que são. Ou seja, com “literacia tecnológica”.
A primeira posição, não só provavelmente não será possível, como mesmo dificilmente seria desejável – afinal tem sido o desenvolvimento tecnológico (especialmente se implementado em Estados de Direito democráticos) que tem permitido uma extraordinária melhoria das condições de vida de populações inteiras.
Quanto à segunda… vejam-se os alertas acima.
A terceira, desde logo é aquela que permite que o modo humano de ser, naturalmente o que nos é próprio, se destaque do modo de ser máquina destes computadores, etc. De forma que nos constituímos como homens precisamente enquanto as utilizamos.
Depois, é nesta constituição que poderemos, hoje, preparar a sociedade açoriana para, nas próximas décadas, se colocar entre os vencedores da sociedade global com máquinas de segunda era.
Enfim, normalmente é nas sociedades com maior literacia tecnológica que se projetam e se utilizam máquinas com o maior proveito humano, mas sem o excesso de lhes conferir – num pensamento mágico oposto a qualquer literacia científica e tecnológica – o que não é próprio delas.
Numa crónica que já começa a ficar demasiado longa, apontarei ainda que – para ontem! – será bom que implementemos a literacia tecnológica na comunicação social e política em geral. Mas particularmente nas políticas e nas práticas educativas, e muito especialmente em todos os cursos tecnológicos, intermédios ou superiores. Estudando, e refletindo criticamente, com sociólogos como Luhmann, economistas como Brynjolfsson, filósofos como Echeverría…
Focando a comparação entre os processos lógicos da inteligência artificial e os processos psicofisiológicos do pensamento humano e da consciência.
Para entretanto regermos todas as opções políticas relativas à implementação das novas máquinas com a prudência que decorre do “princípio da responsabilidade”. Proposto por Hans Jonas, em obra com esse título – e seguindo nós esse princípio mesmo quando não concordamos com a interpretação ali proposta da tecnologia  para salientar o impacto que, pelas tecnologias contemporâneas, passamos a ter sobre a possibilidade a longo prazo quer da Natureza, quer de um modo humano de ser.

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