De incêndios vários à decisão e prestação de contas

Desde os incêndios todos os verões até a decisão que demorou 50 anos sobre um novo aeroporto, parece bem termos um problema com as decisões em alternativas da nossa vida coletiva. (Que um dos nossos maiores entretenimentos televisivos sejam os infindáveis e em regra inconsequentes comentários de eventos políticos, é mais um sintoma desta dificuldade).

Numa aproximação ao esclarecimento da estrutura desse problema, em particular quando as alternativas se abrem sobre equipamentos públicos, será útil atender a um outro incêndio: o que deflagrou no hospital público da ilha mais povoada dos Açores, São Miguel, em maio passado.

A área de implantação desse complexo é tendencialmente retangular. Mas, apesar de o incêndio ter ocorrido apenas na secção onde se encontrava a central elétrica, todos os doentes foram evacuados e os serviços foram suspensos. Por sorte, a iniciativa privada construíra poucos anos antes um hospital de dimensões suficientes para acolher agora os doentes que não pudessem cruzar o mar.

As primeiras explicações avançadas para essa suspensão geral apontaram para a destruição dos sistemas elétrico e de ventilação. Entretanto, são dadas informações semioficiais de que o edifício, construído há cerca de 25 anos, não tinha celagens contra-fogo… O que nos traz à questão da decisão técnica.

Além de especificidades como essa, aos donos desse equipamento público, isto é, aos contribuintes que o pagam (além dos alemães, holandeses… que tenho ideia de o terem subsidiado), e que, como eleitores, mandatam os respetivos responsáveis diretos, em ordem aos utilizadores que aqueles primeiros também são, legitimamente ocorrerão outras questões leigas a que os subordinados desses donos – os técnicos e os políticos – devem resposta.

Por exemplo, não faria sentido e não era tecnicamente possível, há 25 anos ou em alguma melhoria posterior, a instalação de redundâncias, pelo menos em partes do sistema elétrico? De forma que, estragando-se uma parte, outra pudesse assumir rapidamente as funções da anterior, ainda que pela acoplagem de algum equipamento móvel. Há muito que os aviões têm sistemas redundantes de controlo de ailerons e estabilizadores…

O mesmo em relação, por hipótese, a uma modulação do sistema de ventilação. De forma que, contaminando-se uma área do hospital, esta fosse isolada das restantes. Há mais tempo ainda do que a construção aeronáutica, a construção naval implementa isso nos compartimentos inferiores de navios…

A resposta dos técnicos, devidamente justificada, talvez seja que nem essas hipóteses nem outras equivalentes fariam sentido, ou que não eram possíveis à data, e que depois se tornariam praticamente inviáveis. Vou admitir. Mas, a bem da reflexão geral, suponhamos que alguma delas faria sentido prático, teria sido possível, mas que terá sido enjeitada.

Neste caso, a questão incide na justificação dessa decisão.

Suponhamos também – porque provável – que a implementação de tais medidas encarecesse a construção e manutenção do equipamento. Assim, a decisão terá sido entre, por um lado, apostar na pequena probabilidade de incêndio (ou acidente equivalente), e reduzir o custo financeiro bem como a exigência de competências laborais alocadas a esse hospital; ou, por outro lado, valorizar a gravidade dos possíveis acidentes, e desviar para ali verbas e competências de outros setores públicos – nos quais se pagaria, então, o preço da melhoria do anterior.

(Também nunca é impossível que membros de algum gangue ocupem órgãos do Estado, para desviarem fundos públicos para a contratualização de serviços controlados pelo gangue. Mas deixemos esta possibilidade ao cuidado da Polícia Judiciária e Ministério Público).

Em suma, aquela decisão não terá sido estritamente técnica, antes terá radicado numa decisão política. Dependendo ultimamente da hierarquia de valores que o decisor terá assumido.

O que nos traz de volta aos donos dos equipamentos públicos e mandantes de quem os gere. Nós. Que temos o direito de pedir contas a quem toma essas decisões. E os nossos representantes não têm senão o dever de no-las prestar, e de um modo que leigos, com algum esforço, as compreendam. Para que as devidas ilações práticas sejam retiradas – este é o cerne da questão.

Mas também nos cabe pedir contas a nós próprios, e delas tirarmos ilações práticas. Relativamente à disposição, ou falta dela, de nos esforçarmos para compreender aquelas prestações informais de contas técnicas. À nossa exigência, ou falta dela, de as recebermos em devido tempo. De esclarecermos connosco próprios as nossas hierarquias de valores, e de elegermos quem assume claramente a nossa, ou de fazermos o contrário disso. Inclusive, se houver razões para nos julgarmos suficientemente competentes para desempenhar certas funções públicas conforme esses nossos valores, e não se vislumbrar mais quem o faça, de nos disponibilizarmos, ou não, para as desempenhar (ainda que, pela minha parte, só a ideia de se ter de participar nos círculos que se cruzam com aqueles shows televisivos seja suficiente para desculpar quem arrepie este caminho).

É conhecida a frase (que não será de Einstein) de que insanidade é repetir o mesmo comportamento esperando obter resultados diferentes. Na verdade, ela é algo ambígua e poderá ser falsa por vezes. Mas, no arco que vai desde a construção de grandes equipamentos ou do ordenamento do território, até o mau funcionamento disso tudo ou mesmo a sua destruição em incêndios, será de a ter presente enquanto não normalizarmos essa prestação de contas pessoais, políticas e técnicas. 


Correio do Minho (ed. impressa), 01/10/2024

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