No verão, back to basics com D. Hume

E esta é a pista mais relevante que julgo Hume nos ter aberto, ainda que em poucas frases como as seguintes: “O grande subversor (…) dos princípios excessivos do ceticismo é a ação, o trabalho e as ocupações da vida comum”.

David Hume (Edimburgo, 1711-1776) serviu a Coroa britânica na embaixada em Paris, cidade onde também ficaram famosas as suas noitadas com amigos. Ou seja, o homem era reconhecido como alguém capaz de aumentar a probabilidade de a vida correr bem, quer na dimensão pessoal e de socialização, quer na dimensão pública ou comum. Afigura-se-nos assim uma boa leitura para este próximo tempo de lazer, em que também podemos preparar mais um ano de vida. Inclusive pelo reduzido tamanho, e pela linguagem acessível, da obra que referirei adiante.

Na dimensão pública, Hume esteve na origem do primeiro sistema monetário internacional – o padrão-ouro – com a sua contribuição para a Teoria Quantitativa da Moeda. No entanto, a herança mais relevante que nos deixou encontrar-se-á no seu tratamento de questões básicas, cujas respostas condicionam quaisquer teses económicas, ou físicas, das engenharias, do senso comum… com que nos orientamos normalmente.

Essa relevância é bem patente no 2020 Philpapers Survey (2023), com as respostas à pergunta pelo autor falecido com quem os atuais investigadores dessas questões básicas mais se identificam (quadro 7): a pouca distância de quem dificilmente deixaria de ser o primeiro – Aristóteles (séc. IV a.C.) – vem aquele filósofo escocês. Por sinal, o autor que nesse inquérito aparece em terceiro lugar, já a maior distância dos dois primeiros, apontou que foi a obra de Hume que o despertou do seu “sono dogmático”. Lendo-a, portanto, colocamo-nos no centro do nível básico de reflexões cognitivas e de mais algumas outras.

As teses humeanas mais reconhecidas serão as do empirismo e do ceticismo moderado. Mas, ao leitor que se disponha a passar umas horas de verão com este autor, apontarei a pista que tomo como a mais frutuosa e decisiva de entre as que ele nos abriu.

Aquelas teses respondem, respetivamente, às questões do modo como os nossos conhecimentos se processam e da segurança que podemos ter nestes. Segundo Hume, todas as ideias que temos sobre as coisas e acontecimentos que ocorrem no espaço e no tempo – o “mundo” – têm a sua origem na experiência sensível (tactos, visões…). Mas as associações que fazemos com essas ideias, designadamente, ilações causais (estabelecimento de relações de causa-efeito), generalizações e previsões, restam sem fundamento seguro.

Por exemplo, não estamos legitimados para afirmar que, na realidade mesma desse processo, a causa de o valor de uma certa moeda no momento t+1 ter diminuído em relação ao valor dela em t-1 foi o aumento, verificado no momento t, da quantidade dela em circulação e/ou da velocidade desta circulação. Nessa base, não estamos plenamente legitimados para afirmar que qualquer moeda, em tais circunstâncias, se desvaloriza (Teoria Quantitativa). Nem que, por exemplo, se o BCE facilitar o acesso ao euro este tenderá a desvalorizar-se em seguida.

A argumentação da fragilidade dessas associações cognitivas fica para a leitura, qual exercício mental antes de um mergulho ou passeio de bicicleta. Em particular, julgo que valerá bem a pena o workout de sintetizar – pôr na forma canónica, como dizem os lógicos – o argumento do célebre Problema da Indução (Investigação Sobre o Entendimento Humano, Edições 70, 2020, pp. 40-43). Pois, por um lado, desde Hume esse problema ensombra quaisquer generalizações e previsões que as ciências empíricas, tanto as naturais quanto as sociais e humanas, levam a cabo. Por outro, arrisco-me a prever que o resultado desse exercício constituirá um bom exemplo de como, de uma argumentação ou prova lógica, se pode dizer que é bela – a cereja em cima do bolo desta leitura.

Significa esse ceticismo (moderado) que quaisquer teorias ou posições cognitivas – a palavra chique hoje é “narrativas” – se equivalem? Não. E esta é a pista mais relevante que julgo Hume nos ter aberto, ainda que em poucas frases como as seguintes:

“O grande subversor (…) dos princípios excessivos do ceticismo é a ação, o trabalho e as ocupações da vida comum”. Ou, “eis aqui a principal e a mais perturbante objeção ao ceticismo excessivo: nenhum bem duradoiro pode alguma vez dele resultar” (ibid. pp. 168, 169).

Desde os pragmáticos americanos a partir do séc. XIX ao filósofo português Fernando Gil (1937-2006), a relevância da ação para as crenças e o conhecimento tem sido reconhecida de diversas formas.

Nessa esteira, nas nossas “ocupações da vida comum” bem-faremos em assumir relações causais, e em avançar teorias gerais e previsões como as acima mencionadas sobre a variação do valor das moedas. Ou sobre alterações climáticas e emissões de dióxido de carbono; sobre a IA e alterações na sociedade e no trabalho; sobre novas estirpes virais e vacinas; sobre imigração, sustentação da produção económica e tensões socioculturais… Mas, conscientes dos passos em que mais nos poderemos enganar, deveremos tombar menos neles, lavrar menos nesses erros de cada vez que os encetemos, e ter maior acuidade na sua retificação.

Em suma, com a leitura de Hume ganhamos “um grau de dúvida, de prudência e de modéstia que, em todos os géneros de escrutínio e de decisão, deve para sempre acompanhar um exato argumentador” (ibid. p. 171). Coisas úteis, me parece, para levar de umas férias rumo à construção boa e duradoira de mais um ano.


in Correio do Minho (ed. impressa), 01/07/2024



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