O mal está aqui



Fui ver O Mal Não Está Aqui, de Ryusuke Hamaguchi (2023), por uma pequena sucessão de coincidências mais a boa memória de um outro filme do mesmo realizador. As críticas são díspares. Mas, desde as suas primeiras cenas, me ocorreram passagens do diagnóstico e da terapia que Albert Borgmann propôs da nossa cultura e sociedade tão mediadas tecnologicamente. E assistir ao filme do realizador japonês, em diálogo com este filósofo (falecido fez agora um ano) de nascimento alemão mas adotivo do e adotado pelo Estado norte-americano de Montana, mais do que premiou a aposta.

Designadamente, a cena, demorada, da recolha de água num riacho, agachando-se a pessoa junto a um pequeno desnível onde a água recém-degelada corre límpida, para a apanhar da poça num potezinho, com o cuidado de não levantar impurezas do fundo.

Aos elementos desses contextos na floresta ou na cidade, bem como aos utensílios usados – ex. potes –, Borgmann chama “coisas” (ing. things). Com as quais a pessoa se relaciona integralmente, ajustando às respetivas estruturas o seu (da pessoa) comportamento na produção do resultado pretendido.

No filme, o consequente transporte da água em pesados jerricãs, à mão, ao longo de um atalho até ao jipe, prossegue essa relação com as coisas. Para toda a vivência se alterar, no entanto, assim que o condutor aciona a ignição do veículo.

Nesse momento, ativa-se o “device paradigm” com que o filósofo germano-americano carateriza a nossa forma de vida contemporânea. “Dispositivo” é tudo aquilo que utilizamos, e que se nos apresenta para essa sua utilização diretamente em vista do resultado prometido, ocultando-se a estrutura pela qual o utensílio o gera – como o motor, transmissão e chassis de um automóvel, os circuitos integrados de um smartphone etc.

Só em caso de avaria se nos anunciam essas “hidden machineries” (Borgmann). Mas, então, não para as desocultarmos, nos ajustarmos a elas e porventura as retificarmos. Antes para as remetermos a algum especialista que as conserte e no-las devolva, a funcionar de novo ocultamente. Ou, sendo o conserto impossível ou mais caro do que o preço aceitável do produto, as remetermos à reciclagem/lixo.

O valor que sustenta esse paradigma é o da facilidade do consumo. Na base da distinção absoluta entre meios e fins – respetivamente, as maquinarias ocultas e os produtos que elas apresentam ou disponibilizam.

No consumismo daí resultante, vivemos alienados da realidade que o mesmo autor reconhece desde florestas e rios até matérias como madeira, água, animais, rochas… Que se distingue por com ela nos podermos envolver em trabalho corporal.

Para reativar essa nossa relação, Borgmann todavia de maneira nenhuma emparceira com os atuais ativistas de um regresso aos campos pré-industriais, se não mesmo à selva e às cavernas.

Outrossim, propõe a adoção do que designa “práticas focais”. Como a recolha regular de água pura num poço, sem prejuízo de entretanto também se utilizarem sistemas de água tratada e canalizada até às torneiras nas casas. Ou rachar e empilhar lenha, para depois acender e manter a lareira da sala de convívio, em vez de apenas ativar sempre algum dispositivo de aquecimento central. Hamaguchi ilustra isto tão bem, depois das cenas de arranjo corriqueiro de lenha, quando o faz-tudo da aldeia, em poucas palavras, instrui o visitante citadino na técnica de conjugação do corpo, do machado e do toro (os espetadores com treino na espada japonesa certamente se sentirão em família), com o corte a resultar então numa simplicidade bela que, para o agente, é até extática.

Práticas em que os meios são assumidos sem separação dos fins. E que dão sentido a todo o contexto dos elementos com que se jogam.

Não sei se essa terapia sociocultural será funcional. Mas não introduzirei aqui esta discussão. Mantendo a atenção no diálogo entre estes discursos cinematográfico e filosófico, sugerirei antes uma sua tensão com consequências morais e até políticas.

A partir das magníficas montanhas e planícies de um dos maiores e menos povoados Estados dos EUA, não admira que Borgmann reconheça na “wilderness”, digamos, na natureza que flui espontaneamente sem intervenção humana, uma coisa focal em si mesma.

Mas esse reconhecimento apenas nos induz ao maravilhamento e respeito face à multiplicidade dos processos naturais – Kant, no séc. XVIII, referiu isto com o conceito de “sublime”. Não obriga, me parece que em divergência com Hamaguchi, à identificação dessa acivilização – permita-me o leitor o neologismo para evitar a conotação de “incivilizado” ou até de “selvagem” – com Natureza. Assim, com “N” maiúsculo, como nome de uma entidade una, porventura com desígnios se não mesmo dotada de vontade.

De modo que não temos de assumir ou de importar o que ali se verifica. Ou seja, não é porque um veado ferido – no fim do filme – mata uma (criança) intrusa, que será próprio a um homem ferido (presumivelmente por ver o ataque do animal à filha) matar outro homem que lhe passe perto.

As práticas e coisas focais, como eventual terapia de um desvario tecnológico, não nos comprometem com a chamada “falácia naturalista” – tese de que algo é moralmente bom uma vez que seja natural. No incorrimento desta falácia, em que me pareceu acabar o filme, aí sim, está o mal. Um mal teórico – lógico e metaético. Mas de onde facilmente decorrem males práticos, contra o título do filme, como o homicídio em que este termina. Ou como, fora do filme, me parecem alguns ataques físicos a instalações tecnológicas relevantes para o nosso quotidiano civilizado.

Terminarei, porém, dando um passo atrás dessas questões: a aposta em escutar Hamaguchi e Borgmann creio ser logo mais do que premiada pela chamada que ambos nos fazem, ainda apenas estética, antes de qualquer ilação prática, ao que flui para além de nós, e em muito maior escala do que a nossa.


in Correio do Minho, 08/06/2024

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