O wokeísmo e uma dependência social do
conhecimento
Dessa tese da "Validade igual" de quaisquer teses
teóricas alternativas pode derivar-se que, ao se estabelecer uma delas em
detrimento de outras, se estará simplesmente a servir os interesses do grupo
social que a estabeleça.
É aí que o atual movimento woke radica as suas
teses contra o ‘patriarcado, branco, heterossexual’ etc. A saber, os
conhecimentos naturais (a física…), sociais (a economia…) e até formais (a matemática
e a lógica) estabelecidos pela civilização de matriz europeia constituir-se-ão
primeiramente como instrumentos dos grupos que, efetivamente, têm dominado essa
última. Pelo que caberá aos restantes grupos – mulheres, homossexuais,
não-caucasianos… – impor em paralelo construções cognitivas que sirvam os
respetivos interesses.
Para o que muitos wokeístas têm considerado
apropriado "cancelar" quaisquer agentes públicos que identifiquem como seus opostos
– desde despedimentos profissionais, ataques pessoais e não publicação de obras,
ao derrube de estátuas.
A pausa das férias será uma boa oportunidade para uma consideração crítica dessas propostas que nos entram hoje pelo cinema, movimentos políticos e sociais, escolas...
Talvez nem tanto para uma consideração crítica daqueles cancelamentos. Pois, à razão da força de qualquer totalitarismo, como o
dessa deriva woke, a única resposta eficaz é a razão de uma força maior que
mantenha a liberdade da discussão de discursos alternativos. Numa democracia
liberal e em Estado de Direito, os cancelamentos são problema de polícia ou
de tribunal.
No entanto, se o que se pretende não é apenas que
se possa discutir, mas que esta discussão valorize justificações racionais e tão
objetivas quanto possível, então importa começar por avaliar a força da razão
que sustenta a tese da "Validade igual" de quaisquer conhecimentos.
É certo que se pode simplesmente invocar que a
argumentação a favor dessa base de sustentação do wokeísmo ataca precisamente
o valor da racionalidade no estabelecimento de alguma tese em detrimento de
outras, pelo que se autorrefuta. Contra esta tentação racional, porém, logo o fundador
da explicitação de formas lógicas e do seu recurso discursivo, Aristóteles, nos
avisou sobre o sonho de alguma explicação racional total e livre de quaisquer
anomalias. Pelo que, na oposição a todos os totalitarismos, sejam eles antirracionais
como o wokeísmo cancelador, ou derivem eles de um sonho da nossa faculdade racional, deveremos aferir a força que reste àquela razão apesar da sua anomalia autorrefutativa.
Um ótimo instrumento para isto, inclusive pela
linguagem simples, me parece ser o livrinho (131 pp. na edição inglesa, de
pequenas dimensões) de Paul Boghossian, Fear of Knowledge: Against Relativism
and Constructivism, Oxford University Press, 2006. Com tradução espanhola na
Alianza Editorial (170 pp. também pouco carregadas de palavras), Madrid, 2009. Neste
contexto de leituras de férias, não deixarei de apontar que encontrei há poucos
meses essa última edição (e comprei-a, esquecido da compra há anos com leitura
infeliz e preguiçosamente adiada do original inglês, despistes por entre os labirintos da memória!)
na excelente livraria Alibri, em Barcelona. Cuja recomendação deixo vivamente a
quem passe por essa cidade e se interesse por temas como estes. Pois não
conheço no Porto ou em Lisboa qualquer livraria cuja oferta sobre estas áreas
se lhe compare, mais o bónus da competência e simpatia dos funcionários.
O construtivismo social e as suas três teses
O autor começa precisamente com uma referência ao
caso com que iniciei estas linhas. Na sua base, apresenta a tese de uma "Dependência
social do conhecimento", explicada pela tese do "Construtivismo social
do conhecimento": estes dependem das respetivas sociedades pois qualquer
conhecimento é socialmente construído.
Essa última tese desdobra-se em três. A primeira,
e radical, é a de que quaisquer factos – estados ou combinações de coisas – são
construídos pelos grupos sociais que os consideram, precisamente ao serem
pensados ou descritos. Boghossian refere o exemplo, de N. Goodman, de que o
isolamento de umas poucas estrelas entre as muitas no firmamento, para com elas
se desenhar uma certa constelação, é uma opção social contingente.
Por maioria de razão, se os factos são socialmente
construídos, então também o é tudo aquilo que conte como evidência deles – tese do "Construtivismo da justificação". Um exemplo é a resposta do cardeal Belarmino
ao convite de Galileu para que observasse os astros através da luneta, o que o
inquisidor recusou pois, como fonte de conhecimento, só reconhecia as Escrituras.
Enfim, uma variante dessa segunda tese é a tese de
que, para acreditarmos em algo – i.e. para nos comprometermos com uma ideia –,
além de eventuais evidências somos sempre condicionados pelo contexto
sociocultural. Pois: se esta terceira tese é verdadeira, então a de uma
justificação racional, contra o construtivismo da justificação, é falsa; logo
(pela forma lógica da contraposição), se for antes verdade que as justificações
são racionais, então é falso que o processo de crença seja socialmente
construído.
A análise e refutação dos argumentos a favor de cada
uma dessas teses estrutura o resto do livro: os capítulos 3 e 4, contra o
construtivismo radical dos factos. Os capítulos 5, 6 e 7, contra o derivado
construtivismo da justificação. E o último capítulo, contra o construtivismo social
da explicação pela qual nos comprometemos ou acreditamos numa ideia.
Uma nota sobre o cerne da divergência entre as teses "clássicas objetivistas" (realistas) e aquelas teses construtivistas: não está simplesmente na qualidade (afirmação vs. negação da objetividade), mas antes na quantificação. Pois as segundas afirmam que nenhum conhecimento é objetivo, enquanto as primeiras sustentam que (apenas) alguns o são. Assim, segundo o velho Quadrado da Oposição lógica, se as teses de um dos conjuntos são verdadeiras/falsas, as teses do outro são necessariamente falsas/verdadeiras.
Outra nota sobre os requisitos mentais dessa
leitura: desde as mencionadas contraposição e oposição lógicas, até as adiante referidas redução ao
absurdo e generalização, tenho ideia de que em passagem nenhuma do livro se usa
alguma forma lógica que não se encontre, pelo menos desde o início deste
século, nos programas do 10º ano de escolaridade. Mesmo para quem não tenha
essas formas presentes na memória, o requisito cognitivo da leitura da
generalidade dessas páginas é apenas o das competências racionais que havemos
de ter desenvolvido na adolescência. Resta o requisito da vontade de as
implementar.
Contra o construtivismo dos factos
Para encetar um acompanhamento dessa análise
e avaliação daquelas três teses construtivistas, voltemos ao caso do
conhecimento de constelações. Depois de ressalvar a distinção entre a tese da "Dependência
dos factos em relação às descrições" e a tese, num construtivismo mais fraco (e
mais defensável), da "Relatividade social das descrições" de quaisquer
eventuais factos, o nosso autor analisa em duas etapas o argumento de Nelson
Goodman a favor daquela tese mais forte. A primeira etapa, numa redução ao absurdo, a
segunda, numa generalização.
Primeira: se as constelações (como factos) existem
antes de serem pensadas e descritas, então quaisquer (praticamente infinitas)
possíveis configurações de estrelas são constelações. Mas, no seio dos factos relativos aos grupos de estrelas que compõem constelações, isto é absurdo. Logo, pelo menos em relação a esses factos, é
falso que as constelações existam antes das respetivas descrições.
Em seguida: delimitar cada estrela – as que compõem alguma constelação ou outras – em vez de por exemplo delimitar como unidade a considerar cada sistema como o Solar, ou as galáxias inteiras etc. – é uma escolha conforme os interesses práticos dos sujeitos dessa delimitação. Noutra passagem, encontramos o exemplo equivalente de R. Rorty da delimitação que constitui uma girafa, porque isso serve os interesses de caçadores; já dos pontos de vista de uma formiga ou de um astronauta, não haverá ali lugar a qualquer girafa. O mesmo valerá para todos os objetos.
Logo, os factos dependem das respetivas descrições.
A principal objeção que Boghossian introduz a esse
argumento é que neste se assume que os conceitos são como, a comparação é do
autor, moldes corta-massa (para dar forma a biscoitos): independentes daquilo a que
se aplicam, moldam os objetos à imagem deles. Ou seja, usamos o molde de
célula, e formamos cognitivamente órgãos e até organismos; mas, para formar
células, usamos o molde de molécula; e para esta, usamos o molde de átomo…
enfim, usamos o Modelo Padrão das Partículas Elementares. Mas, pergunta-nos
este filósofo (ed. ing. p. 35, ed. esp. p. 60), em algum momento não terá de
haver uma determinação da própria "massa", que oriente o modo como é cortada e,
afinal, o desenho dos "moldes" em função de tal determinação?
A decisão nessa passagem fica expressamente à nossa conta, leitores. Mas adiante o autor aponta três problemas em que esse construtivismo com base em conceitos-moldes corta-massa se embaraçará. Depois, apresenta uma versão alternativa do construtivismo dos factos, para julgar que esta versão se embaraça no dilema entre ser incompreensível ou se autorrefutar. De modo que conclui os capítulos 3 e 4 com o argumento:
Os factos podem ser objetivos ou são todos construídos. Se os factos são construídos, então são-no mediante moldes corta-massa ou na forma relativista (a alternativa acima mencionada). Se se pretende construí-los mediante moldes corta-massa, então em alguns casos tomba-se perante os mencionados problemas. Se se pretende construí-los relativistamente, então em alguns casos tomba-se no referido dilema. Logo, os factos não são todos construídos. Logo, alguns são objetivos.
Antes de partirmos para o acompanhamento crítico desse argumento, e para o dos capítulos seguintes sobre as duas teses construtivistas derivadas, deixarei apenas uma notazinha de rodapé a respeito das aberturas pragmáticas
que vim fazendo nesta coluna: no seu ataque ao construtivismo, Paul Boghossian
não visa os discursos pós-modernos que talvez fossem de esperar – Lyotard,
Foucault… - mas sim eminentemente teses pragmáticas como as de Goodman ou de Rorty. É certo que estes autores não esgotam o multifacetado
horizonte do pragmatismo (logo o próprio Peirce, no início do século passado, o fragmentou cunhando
ao lado o termo "pragmaticismo"). Mas isto não é o mais relevante. Importa é
que é pelas diferenças, até pelo confronto que evoluímos. Pela mera
confirmação, restamos em círculos. Em particular para nós, de inclinação pragmática,
pois, esta leitura é especialmente enriquecedora. Para um simples verão, não
estará nada mal.
in Etc. e Tal - Jornal, 01/08/2023 (revisto)