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foto: IAVE |
Este enquadramento é particularmente
significativo, pois não se esgota – o que já não seria pouco – nas provas acima
referidas. Antes, constitui-se como um critério ou esquema orientador do que se
espera desses níveis de ensino na dimensão cognitiva. É todo um projeto
educativo e, assim, na verdade todo um projeto de sociedade, de economia e de
organização política que aí se joga.
Valerá pois a pena confrontá-lo com os desafios
perspetivados para a IV Revolução Industrial que estará em curso.
O enquadramento concetual das provas
O documento mencionado explicita que, como nos
anos anteriores, as questões daquelas próximas provas se dividem em três
níveis, conforme as respetivas complexidades cognitivas: um nível "inferior",
que convoca a memorização e mera reprodução das fórmulas de conhecimento; um
nível "médio", cujas questões requerem compreensão, interpretação e aplicação
do conhecimento em situações rotineiras; e um nível "superior", que comporta a
formulação pelo examinando de juízos de valor, a argumentação, e a aplicação do
conhecimento a novas situações.
O IAVE prescreve um “equilíbrio na valorização das
várias aprendizagens avaliadas e dos níveis de complexidade cognitiva
requeridos” (’Informação-Prova Geral’, p. 2). Para isso, entre os diversos
itens, a cotação mais elevada tem de ser inferior ou igual ao dobro da menos
elevada.
A mencionada estruturação facilmente se reporta a taxonomias
como a do psicólogo americano Benjamin Bloom, no domínio cognitivo. A estrutura
geral dos exames e demais provas tem assim um importante respaldo científico.
Resta aferir se esse enquadramento concetual que, enquanto se reporte a Bloom,
começou a ser formulado no dealbar da III Revolução Industrial a meados do
século passado, ainda recebe, por sua vez, respaldo da sociedade e da economia a
aproximar-se do fim do primeiro terço do séc. XXI.
A novidade laboral da IV Revolução Industrial
Na última década, com o crescimento exponencial da
IA e suas aplicações, autores como E. Brynjolfsson e A. McAfee (2014)
salientaram os desafios e oportunidades decorrentes dessa tecnologia e das TIC (t.
de informação e comunicação). Entre nós, essas questões foram exploradas em
fóruns como a conferência do BCE em Sintra, em junho de 2017. Ou, já depois da
experiência global da utilização das TIC durante a pandemia, na entrevista a Daniel Susskind, disponibilizada online pela Fundação Francisco Manuel dos
Santos, a propósito da sua obra Um Mundo Sem Trabalho (2020). Apontemos
algumas ilações deste autor.
Desde logo, as alterações tecnológicas em curso
não têm precedentes históricos equiparáveis. Pois não substituem apenas a
energia ou mesmo a destreza humanas, mas sim a própria capacidade de tratamento
da informação, decisão, e até geração de conteúdos por combinação de dados. Ou
seja, tarefas mentais para cuja execução os seres humanos se desviaram, uma vez
deixadas as tarefas repetitivas físicas para máquinas, também estão agora sendo
ocupadas por artefactos técnicos. Pelo que o erro ludita – de que as máquinas
da I Revolução Industrial reduziriam a procura de trabalho humano em geral –
não constitui um contraexemplo às atuais preocupações com as consequências
sociais destas novas tecnologias.
Mais precisamente, o problema nem será um súbito
desaparecimento de postos de trabalho. Mas a gradual – porventura rápida e
próxima – incapacidade de largas parcelas da sociedade encontrarem trabalho por
que elas facilmente se responsabilizem. Seja por falta de competências. Seja
por não se disponibilizarem a assumi-lo por razões culturais de identificação.
Um exemplo desta última dificuldade é o desempenho de tarefas de apoio social –
a crianças, idosos ou doentes – por homens, em sociedades como a nossa, ou por
imigrantes, em sociedades como a japonesa (tradicionalmente chauvinista).
O que abre a questão do efeito psicológico, social
e cultural de um desemprego sistémico. Nomeadamente, sobre o sentido que cada
pessoa dará à sua vida uma vez que se encontre desvinculada de qualquer obra e
contribuição para a respetiva sociedade. Ocorre-me que o exemplo dos cidadãos
de Roma durante o Império não é tranquilizante.
Mas fixemo-nos nas competências humanas requeridas
no mundo com IA. O referido economista e investigador inglês não as especifica nessa
entrevista. No entanto, abre duas pistas significativas:
Haverá lugar para as competências que se reportem
a tarefas que algoritmos e robôs inteligentes (ainda) não desempenham ou fazem-no
mal. Como as de interação pessoal empática, de resolução de problemas, ou de
criatividade.
Relativizando esta primeira pista, porém, não
podemos ignorar os robôs sociais cuja interação está a ser bem aceite em
alguns meios (o próprio Susskind refere o caso japonês). Toda a sorte de robôs
que resolvem problemas, como o das melhores rotas enquanto aspiram o chão (embora
me pareça que o meu aqui em casa ainda tem alguma coisa a melhorar nesta
competência). E, mais impressionantemente, algoritmos capazes de criar desde
brochuras turísticas a composições musicais.
O mesmo autor também admite haver lugar para as
competências que se reportam ao design, produção e utilização destas novas
tecnologias.
Sobre a utilização, suponho que essas competências
tenderão a ser as necessárias não já à operacionalização de tais tecnologias –
como na condução de um camião ou no emprego de um bisturi – mas à cooperação
com essas últimas. Desde a decisão entre as alternativas sobre o horário da
viagem, a rota… apresentadas pelo algoritmo que conduzirá o camião; até à
interpretação de uma imagem num ecrã, nas escalas que se queira, e ao manuseio
de um joystick que comunica com um braço mecânico, o qual então intervém num
organismo humano, depois de o robô sozinho tanto ter aberto como vir a fechar em seguida esse doente.
Quanto ao design e produção de tais robôs, não deixemos
de considerar as virtualidades da IA com capacidade de aprendizagem.
Um lugar exclusivo dos agentes humanos não parece pois
estar garantido.
Em síntese, sem nos aventurarmos em especulações
de longo prazo – sobre os nebulosos tempos da meia idade de quem nasceu já neste século – é plausível que as
competências cognitivas que serão procuradas nos primeiros empregos dos atuais
estudantes serão eminentemente as do nível superior reconhecido pelo IAVE. Correspondentes
aos níveis mais complexos, na esteira de B. Bloom.
"Muitas vezes, ainda estamos a formar pessoas para serem profissionais do
século XX, em vez de do séc. XXI"
Este subtítulo traduz uma observação de Susskind
na referida entrevista (min. 14:14). Aplicar-se-á à próxima classificação dos
estudantes portugueses, e à sugestão que assim se lhes faz sobre as
competências que deverão continuar a desenvolver, na justa medida em que as
cotações dos conjuntos de itens de níveis inferior e médio se aproximem, ou até
ultrapassem, a cotação do conjunto de itens de nível superior.
Entretanto, o processo de resposta individual a
questões verbais ou de linguagem formal, num tempo limitado – que constitui o
tipo de provas que temos vindo a considerar – está longe de esgotar as
metodologias de formação laboral e social. Desde os trabalhos de grupo, até aos
exercícios físicos e às obras artísticas ou técnicas.
Para aferirmos o grau em que aquela observação se
aplicará à escola portuguesa atual, pois, além da cotação, nos exames e, por consequente sugestão, na maioria dos testes sumativos internos, das questões que convocam
faculdades intelectuais superiores, devemos atender, nas avaliações internas,
por um lado, às cotações das avaliações psicossociais. A começar pela assiduidade,
pontualidade e responsabilidade, mas também a cortesia se não mesmo empatia, e
outras como a reação à frustração – ultrapassam os 10% das avaliações internas?
E com que grau de exigência?
Por outro lado, importam a robustez e destreza
físicas, necessárias em muitas daquelas tarefas que os robôs com IA (ainda) não
desempenham bem. Como lavar doentes ou idosos, inúmeros postos de trabalho em
turismo… – que requerem tanto estas competências quanto as anteriores. Mas qual
é o peso da avaliação de Educação Física na classificação final do ensino
secundário, e o que é que se exige à saída nessa disciplina? Qual é o efeito verificável,
no fim da escolaridade obrigatória, das educações artística e técnica no ensino
básico?
Questões à atenção dos executantes (professores) e
dos organizadores (diretores vários) da educação escolar. Mas, creio que mais
ainda, das famílias com jovens em idade escolar, em particular, e, em geral,
dos eleitores que se importem com a nossa transição do primeiro para o segundo
terço deste século.
in Etc. e Tal - Jornal, 31/05/2023 (revisto)