Da COP27 a Bayu-Undan – limiares éticos para a captura e armazenamento de carbono

Desta vez, notícias sobre a COP – a 27ª, em Sharm El Sheick - não abriram sucessivos noticiários. As atenções estavam antes focadas na ASEAN e ainda na Ucrânia. Ou (não exclusivo) os spin doctors começam a achar preferível que as imagens dos governantes se não desgastem numa encenação que, repetida há já mais de um quarto de século, começa a saber a sopa requentada.

Talvez melhor assim. Que a dissolução daqueles exercícios retóricos porventura facilitará a disposição para decisões sobre empreendimentos que, efetivamente, façam a diferença. Como as que se jogarão na exposição de Carbon Capture Technology, já em preparação para Bremen em setembro do próximo ano. Ou, antes ainda, o projeto de captura e armazenamento de carbono (CAC) no bloco offshore Bayu-Undan, em Timor-Leste.

Mas comecemos pelo princípio, que é nestes que medram os mais fundos enviesamentos a quaisquer resoluções dos problemas dados.

Um problema, dois equacionamentos

O problema climático é conhecido: constitui-se, por um lado, pela súbita aceleração das taxas de aumento das temperaturas, de acidificação dos mares, de diminuição da diversidade das espécies vivas… a partir de meados do séc. XIX; por outro lado, pela substancial emissão artificial de gases com efeito de estufa (GEE) desde a Revolução Industrial. Uma correlação entre esses processos é plausível. E os modelos de previsão geram resultados extremamente preocupantes.

Epistemologicamente, o método científico da simulação (modelação) é menos seguro do que o da observação instrumental – aplicado nas medições referidas – o qual também não garante uma certeza absoluta. Mas, para as previsões requeridas por uma tomada de decisão, não temos melhor do que isto.

Feitos esses reconhecimentos climático e epistemológico, cabe equacionar o problema. Numa atitude mais prática e comezinha, procuraremos variáveis e correlativas operações tão estritamente quanto possível no âmbito técnico e microeconómico. Designadamente, de processos concretos de mitigação da emissão de GEE; de adaptação das estruturas de habitação, transportes, produção etc. às previsíveis novas condições climáticas; e, assim cada vez mais o parece, de geoengenharias como a de CAC.

Em oposição, a disposição teórica holística, que não concebe cada fenómeno ou dado que não seja como momento ou parcela de um mundo interligado, não admite tais casuísmos. Na sua formulação racionalista, faz decorrer quaisquer fenómenos a partir de um princípio de um sistema global. Que, no caso do problema climático, muitos têm identificado como sendo o sistema político-económico capitalista. Pelo que apenas substituindo este último, afirmam, se resolverá esse problema.

Curiosamente, não costumam invocar o caso que melhor corroboraria essa tese, a saber, o do capitalismo de Estado na URSS, China etc. Em troca, este equacionamento geral enfrenta os contra-exemplos de os países com melhor comportamento climático serem exemplos do capitalismo privado ou liberal – escandinavos e Reino Unido.

Mas, uma vez que o holismo começa precisamente por desconsiderar particularismos, então no seu seio, como objeções sérias, só se admitirão fórmulas gerais. As quais, dado o (julgo que) persistente fracasso das fundações racionais e críticas do holismo – por Platão, Descartes, Kant (?), Hegel… – porventura serão do âmbito da fé. Nomeadamente, uma fé na razão (não uma razão a favor desta própria) e no seu postulado de uma unidade do mundo. Discutir essa razão de fé, porém, será demasiada areia para a pobre camioneta desta coluna.

Aqui, ficar-me-ei por aquele outro âmbito mais comezinho do enfrentamento do problema climático. E apenas para apontar um tema sobre o qual, na esteira desta COP, me parece que seria relevante termos notícias.

O caso de Bayu-Undan

A referida taxa de aceleração das alterações climáticas e respetivas consequências, e as diminutas taxas de implementação da mitigação e da adaptação, têm provocado a consideração de tecnologias que possam reduzir ou controlar a evolução do problema.

Em 2009, a Royal Society of London destacou duas dessas geoengenharias: a gestão da radiação solar, e a captura do carbono na atmosfera para ser armazenado em locais que o tornem inócuo.

A primeira visaria o processo de aquecimento da Terra (não resolvendo a acidificação do mar etc.) mediante o lançamento na alta atmosfera de partículas refletoras da luz, ou outros dispositivos técnicos com o mesmo efeito. Na altura, afigurava-se como a hipótese mais económica, tecnicamente mais viável, e mais funcional num ataque rápido ao problema do efeito de estufa. O reparo é que não temos experiência de tamanha intervenção, a não ser a (teoria sobre uma) colisão de um asteroide com o nosso planeta há c. 66 Ma., que terá provocado uma alteração na atmosfera impedindo a entrada de boa parte da radiação solar. O que por sua vez terá alterado, em grande medida, o padrão da vida terrena. Não admira que a hipótese dessa geoengenharia não tenha ultrapassado o horizonte especulativo.

Entretanto, as condições técnico-económicas da CAC parecem ter evoluído. É o que por certo se procurará exibir em Bremen. E é o que está em curso no projeto da Santos de captura de carbono atmosférico para o armazenar no bloco Bayu-Undan, praticamente esvaziado dos hidrocarbonetos que continha. Será assim um regresso do carbono a uma sua casa natural.

Essa empresa australiana prevê armazenar aí 10 M. de toneladas de dióxido de carbono por ano – 0,01 Gt., para 51,5 Gt. de CO2 emitidas globalmente em 2019. Parece pouco, mas, ao que sei, é o primeiro destes projetos no mundo a integrar o licenciamento de extração paralela de petróleo, de modo a compensar as emissões correlativas a esta exploração. Em capacidade de armazenamento de carbono, será o maior projeto em curso no hemisfério Sul. Além de se prefigurar como um caso de estudo tecnológico, pela experiência da tecnologia de perfuração horizontal para a montagem da estrutura de injeção de carbono no subsolo.

Num país de língua portuguesa, dificilmente haverá neste momento algum projeto climaticamente mais ou até tão significativo quanto o de Bayu-Undan.

Nada que interesse as nossas televisões. Muito menos os jovens que se colam a obras de arte e a portões em homenagem à sua holística mãe Gaia. Ou quem se cola a eles na ânsia de uns quantos votos – nem de propósito, votos em políticas primas das soviéticas.

Já para empresas portuguesas de tecnologias implicadas nessas explorações, dadas as normais adjudicações em tais empreendimentos, talvez fosse de não descurar as vantagens comparativas da língua (em alguma medida) comum e as boas relações com Timor-Leste, para ponderar o embarque neste comboio que parece estar a arrancar.

Um problema ético, uma solução por condições de articulação e limiares

Além do reparo acima apontado à hipótese de gestão da radiação solar, esse tipo de resposta ao problema climático tem enfrentado objeções ponderosas. Designadamente, a de que a opção por geoengenharias corporizará a húbris dominadora – disposição antropocêntrica que reduz o ser humano a agente de domínio, e tudo o resto a matéria a dominar – que tem gerado uma exploração desmesurada da Terra, e assim constitui a própria raiz do problema climático.

Neste caso, não apenas se manteria essa disposição cultural, como ela seria mesmo sublimada no exercício do chamado “technological fixing” (poderá traduzir-se por “consertamento/remediação tecnológico/a”: o postulado de que quaisquer problemas sociais, económicos… podem ser equacionados e resolvidos tecnologicamente).

O que porventura induziria as sociedades a descurar a mitigação de emissões de dióxido de carbono, promovendo afinal uma escalada do problema.

Estaríamos, pois, perante a disjunção exclusiva entre uns herdeiros de Prometeu, que anunciam uma nova luz para a reconstrução da Natureza, e aqueles que se mantêm integrados nesta e a respeitam. Ao que os promotores das geoengenharias contrapõem uma disjunção equivalente, mas entre "realistas", que optam pelo menor de dois males, e "românticos", que negam qualquer solução enquanto a ótima não for possível. Até na formulação dos disjuntos os dois lados se excluem.

Autores como Christopher Preston ou Toby Svoboda, porém, rejeitam precisamente essa disjunção exclusiva, contrapondo-lhe uma outra inclusiva. Isto é, podemos não excluir qualquer dos disjuntos. Procurando antes as condições de uma articulação entre as três formas de resolução do problema climático – condicionando o uso de geoengenharias à efetiva mitigação e/ou adaptação. Bem como os limiares que, em cada circunstância, justificarão a justa medida da implementação de cada tipo de resposta.

Já bem ultrapassadas as 1200 palavras que devem servir de limite a estas crónicas, por aqui me fico, interessado em notícias sobre a determinação dessas condições e desses limiares.


original in Etc. e Tal - Jornal, 30/11/2022

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