Essa hipótese inscreve-se bem na velha esteira de Aristóteles (Física, IV). Designadamente, numa associação do tempo a cada mudança, sem se invocar qualquer tempo cronológico absoluto. Entretanto, avançarei já a nota de que logo o Filósofo – assim distinguiram os medievais aquele que será o maior polímata da história da humanidade – terminou perguntando se, dessa forma, haverá tempo se não houver a mente que meça a mudança segundo um antes e um depois.
1. A desconstrução do tempo absoluto e
orientado
Como aquele físico (e filósofo) italiano observa, só a partir de Isaac Newton – ou, observemos em complementaridade, desde a mundividência mecanicista Moderna, de que a mecânica clássica é uma expressão paradigmática – assumimos que haverá um tempo absoluto, fluindo por igual em todo o universo, mesmo onde nada aconteça ou mude.
Nessa altura, o grande matemático e filósofo alemão G.W. Leibniz bem insistiu que não faz sentido postular um tempo desligado de qualquer mudança ou acontecimento. Mas a sua voz ficou para trás – como ainda recentemente lembrou um famoso político ao ser deixado para trás: “quando o rebanho se move, move-se”.
"Movemo-nos", até nos virmos chocar contra as teorias de Albert Einstein e as respetivas corroborações empíricas. As quais admitem a mecânica clássica, mas apenas na situação particular em que interagimos com as nossas pontes, comboios etc. Além dessas pequenas distâncias e velocidades relativas, porém, temos de nos reaproximar de Aristóteles e de Leibniz. Curiosamente, um século depois desta recolocação teórica, parece que a cultura popular (o “rebanho”) ainda resiste a segui-la – mistérios da mente humana, perante os quais Aristóteles há dois milénios e quase meio e agora Rovelli quedam as suas investigações físicas.
Voltando ao âmbito dessas últimas na primeira parte deste livro, com as teorias da Relatividade explica-se como, assim que um corpo aumenta a sua distância em relação ao centro de outro corpo com grande massa, o tempo do primeiro se estende ou acelera. Como ilustra a imagem anexa, importada da p. 75 da nossa leitura. Assim como, se aumentar a velocidade de um corpo, o tempo dele se retrai ou abranda – daí a célebre experiência mental proposta por Einstein com um gémeo na Terra e outro numa nave estelar, para se reconhecer que, no reencontro, o primeiro estaria mais velho do que o segundo.
Em conformidade, não se concebe nem se corrobora a tal peculiar ideia Moderna de um tempo absoluto.
Diferentemente, “tempo”, no caso de movimentos ou mudanças físicas,
designa uma das quatro dimensões que compõem uma estrutura que, à falta de um
termo melhor do que os tradicionais, se chama “espaço-tempo”. A qual, por sua
vez, constitui o aspeto formal de uma entidade cujo aspeto mecânico, ou
relativo ao efeito que produz no movimento, se chama “campo gravitacional”. De
modo que a gravidade é simplesmente o espaço-tempo “encurvado” pela massa de
corpos como estrelas e planetas. E o tempo é simplesmente uma das medidas que
determina quão esses movimentos são afetados pela gravidade.
Nas palavras do nosso autor, “Aristóteles
tem razão ao dizer que «quando» e «onde» são sempre apenas a localização em
relação a algo” (op. cit., p. 75). Mas “Newton tem razão ao intuir que
existe outra coisa além das coisas simples que vemos movimentarem-se e mudarem.
O tempo verdadeiro e matemático de Newton existe, é uma entidade real: é o
campo gravitacional” (ibid.). “A síntese entre o tempo de Aristóteles e
o de Newton é a joia dos pensamentos de Einstein” (op. cit., p. 72).
Entretanto, a física dos séc. XIX e XX
também desconstruiu uma “seta” do tempo no plano elementar, “microscópico”. Ou
seja, não haveria nada estranho no caso dos átomos de Benjamin Button (do conto de F. Scott Fitzerald, interpretado em filme por Brad Pitt, sobre uma personagem que evolui de envelhecido a jovem). Embora
no caso do seu agregado, que constitui um homem, o retorno ao passado já seria
estranhíssimo – isto é, muitíssimo improvável.
Só fará sentido falar daquela “seta” neste
nível macroscópico em que nos encontramos enquanto interagimos. Portanto, ela verifica-se
como uma propriedade emergente num nível complexo da matéria, não é uma
propriedade geral desta última (cap. 5, 9). Conforme a única lei da física que
estabelece uma assimetria entre passado e futuro: a Segunda Lei da Termodinâmica.
Uma ilustração macroscópica dessa lei é a
infeliz orientação única de alguma organização para a completa desorganização de
muitos quartos de trabalho, como o meu. Mas Rovelli explica-nos que esta
orientação decorre apenas de os sistemas compostos por cada um de nós (leitores
e escrevinhadores desarrumados) e pelos nossos livros e papéis estarem (os
sistemas) “focados” naquelas configurações destes últimos que nos facilitariam
a interação com eles, “desfocando-se” de todas as restantes configurações possíveis
da papelada. Que serão atravessadas pelo sistema, dada a energia que o mobiliza
e a menor probabilidade de qualquer configuração peculiar (como a de uma
arrumação perfeita). Não fosse o jogo de focagem/desfocagem, e não se
reconheceria uma orientação na mudança entre quaisquer configurações.
Na terceira parte do livro, o autor propõe
uma pista de explicação dessa emergência da orientação do tempo tal como o
experimentamos. Ainda na primeira parte, todavia, volta a um detalhe da
substituição de um tempo absoluto por tempos locais para, na segunda parte, daí
retirar a ilação metafísica que, se bem o interpreto, constitui o alfa e o
ómega deste percurso reflexivo.
A saber: uma vez que os tempos locais se
estendem em ritmos próprios, não há um presente comum aos diversos entes do
universo. Um “agora” partilhado pelo que existe, distinto do passado que é
próprio de tudo o que não existe, mas terá existido, e do futuro também próprio
do que não existe, mas que eventualmente virá a existir. Por conseguinte, temos
de assumir que cada “coisa” bem determinada existe e não existe, conforme os
pontos de vista!
2. Processos, não “coisas”
Como se constitui, metafisicamente, tudo
isto a que se aplica um tempo local, cuja “seta” é apenas emergente e que, na
proximidade de um corpo com massa gigantesca, até se pode fechar como um
círculo (num eterno-retorno)?
A tese da segunda parte deste livro é que
não constituímos substâncias, “coisas” que atravessassem períodos temporais. Antes,
por assim dizer, somos esses próprios atravessamentos.
Ou seja, nenhum de nós, os nossos PC’s
etc., é figurável por um barco que se mantenha o mesmo entre a sua construção e
o seu abate, independentemente de navegar ora junto ao Porto e Gaia ora em
Entre-os-Rios, ora com a tinta ainda brilhante e sedosa ora com ela já
baça e estalada… Como se todas estas condições fossem “acidentes” de uma
“substância” (na linguagem do filósofo grego sob cuja égide continuamos) que se
manteria entre aqueles dois momentos. Diferentemente, se quisermos manter esta
terminologia, a noção de “substância” apenas pode significar o próprio processo
que evolui desde o seu começo até ao seu fim.
A este propósito, Rovelli (pp. 153-155)
cita o diálogo entre o rei Milinda e o sábio Nāgasena, no texto budista Milinda
Panha. Complemento-o com a nota de que uma leitura que desenvolve (embora mais
arduamente, já não num fluir estival) esta conceção do que existe é a de Process
and Reality, do filósofo e matemático inglês Alfred North Whitehead.
Será então em cada interação entre esses
processos que estes, aí, se determinam, e que os respetivos tempos emergem e se
concertam.
3. Uma construção do tempo tal como é
experimentado
Como mencionei atrás, a terceira e última
parte do livro propõe uma hipótese de conceção dessa emergência. Remetendo-nos
para uma consideração do tempo psicológico, ou íntimo, à porta do qual a pergunta final de Aristóteles nos tinha deixado, e que passámos a explorar desde S. Agostinho (Confissões,
XI).
Este outro tempo não é metronométrico, como o tempo cronológico, antes acelera e desacelera. Mais, nele, uma vivência presente
pode integrar memórias do passado e expetativas de futuro. Como o sabor da madeleine
que subitamente remeteu Swann às memórias da sua infância (Proust, Em Busca
do Tempo Perdido, I). O nosso autor refere essa célebre passagem da literatura,
assim como a cuidadosa descrição do tempo íntimo por Edmund Husserl, pelas
quais reconhecemos que neste tempo, contrariamente ao cronológico, aquilo que
se apresenta como passado, aquilo que se apresenta como futuro, e o presente em
que precisamente se apresentam, não se excluem mutuamente.
A questão, como tem sido apontado, é por
que e como se distenderá o tempo psicológico em passado, presente e
futuro, precisamente na medida em que os contrai ou reúne? Isto é, a que
propósito se distingue um passado de um futuro e de um presente, quando este
último se constitui como a imbricação dos outros dois nele? Julgo que esta
questão inverte o trilho reflexivo aristotélico em Física, IV, que
referi na introdução, agora desde a mente para as mudanças, mas com cada um
destes trilhos a se constituir qual prova dos nove do outro.
Não me apercebo de que Rovelli a enfrente diretamente
neste seu livro. Em todo o caso, com uma brevidade, coloquialidade e metáforas
certamente cativantes, mas que me parece também abrirem ambiguidades, introduz
os conceitos de “tempo térmico” e “tempo quântico” que, se bem compreendo, supostamente
permitirão explicar aquela distensão do tempo que virá a ser ordenado e reunido
entre passado e futuro. Infelizmente, a minha matemática queda-se bem abaixo da
que ele utilizou no ensaio “Forget time”, premiado no concurso The Nature of
Time (FQXi, 2008) – fica a referência para os leitores que saibam
interpretar essa linguagem formal, na exposição mais desenvolvida e rigorosa do
que esta no livro que estamos a comentar, e se disponham a uma sua leitura (diria que já
não de férias). O que alcanço, na linguagem verbal de A Ordem do Tempo, é
o seguinte:
Neste passo crucial (pp. 124-129), a base
é a reconhecida conjugação entre as variáveis energia e tempo num sistema
isolado. Posto isso, tomemos um exemplo: i) admitindo o clássico tempo
absoluto e ii) uma chávena com chá (quente) com energia para as suas
moléculas se agitarem bastante, onde se derrame algum leite (tépido) com pouca
energia de modo que as respetivas moléculas se mantenham mais ordenadas; imaginando
que nenhum calor se dissipasse para o ar e para a chávena, diremos que iii)
após o derrame, a energia no sistema é a mesma, mas a agitação das primeiras
moléculas distribui-se também pelas segundas, em sucessivas (no pressuposto
tempo absoluto) configurações da mistura entre moléculas mais agitadas e outras
menos, até um estado de equilíbrio térmico em toda a bebida.
Prosseguindo esta interpretação, a “hipótese do tempo térmico” joga com a referida conjugação entre energia e tempo, mas no plano elementar ou quântico onde as leis da física apenas determinarão a variação dos valores das variáveis – e.g. posição e velocidade das partículas – em relação uns aos outros, sem se incluir uma variável dita “tempo comum orientado”. Assim, i) admita-se um sistema em estado de equilíbrio; ii) forneça-se energia que produza uma mudança no valor de qualquer das variáveis; iii) essa mudança provocará mudanças nos valores das outras variáveis e, assim, provocará o fluxo de sucessivas configurações do sistema até um seu novo equilíbrio. A medida desse fluxo é o dito “tempo térmico” – não por se reportar a uma temperatura, mas sim a processos de organização segundo a teoria termodinâmica – sobre o qual o mais significativo é que é produzido por uma intervenção na situação inicial do sistema.
Esse tempo térmico ainda não tem uma “seta” – pois um sistema de partículas, que evolui de uma configuração A para outra B, tanto pode evoluir daí para uma configuração C como de B pode regredir a A. Ou seja, não é composto por um passado que pudesse ser recordado e ao qual se pudesse recorrer, ao contrário de um futuro que apenas se projeta, como acontece no tempo macroscópico que experimentamos.
Esta orientação, todavia,
poderá ser explicada na base do “tempo quântico”. O qual decorre da assimetria
entre os estados de uma partícula intervencionada consoante se determine
primeiro a sua posição e depois a sua velocidade, ou vice-versa. O
estabelecimento da ordem dessas determinações condiciona o que se lhe segue –
como o passado condiciona o futuro.
Os tempos térmico e
quântico, contudo, “são aspetos do mesmo fenómeno” (p. 129).
De forma que o tempo que experimentamos resultará da nossa intervenção focada numa determinada configuração do
sistema, e assim desfocada de todas as outras configurações que todavia o
sistema atravessará, dada a sua energia e a menor probabilidade de alguma configuração face ao conjunto das outras, até um eventual estado de
equilíbrio.
4. E uma hipótese para além desta leitura
Sobre o âmbito da génese dessas focagens – i.e. onde se determina que configuração se deve focar – o nosso autor abre uma alternativa entre as interações dos agentes que reconhecemos ser (aliás, acrescento, tal como entre vacas e ervas, entre rochas e rios...), e a autoconsciência resultante de uma introspeção que ele remete para René Descartes. E envereda pelas primeiras, após recusar a segunda.
Tanto quanto percebo esse último filósofo, matemático, neurocientista, e também físico francês do séc. XVII, direi que o físico italiano nosso contemporâneo não o percebeu bem. Mas não vou estender estas notas de leitura, já demasiado longas (!), a uma crítica da objeção de Rovelli a Descartes. Para mencionar antes duas outras críticas ao empreendimento cartesiano de fundamentação do conhecimento. Em especial a segunda, porventura facultará a conceção das referidas intervenções humanas no plano macroscópico – e assim da origem do tempo orientado que experimentamos – numa divergência daquele empreendimento epistemológico ainda maior do que no quadro de A Ordem do Tempo.
No fim deste livro, para explorar a ideia
de que o tempo, tal como o experimentamos, é interno e não externo a conhecimentos ou modos de ser como o
humano, o seu autor refere os filósofos alemães Immanuel Kant, E. Husserl e Martin
Heidegger. Curiosamente, não refere a categoria existencial do “cuidado” (al. Sorge),
com a qual esse último filósofo concebe aquele modo de ser sempre em ordem a quaisquer
intervenções, como diria Rovelli, com um foco que, assim, desfoca todas as
outras possíveis configurações do mundo. A primeira nota que aqui aponto é que talvez possamos explorar
concetualmente esta focagem mediante aquela categoria heideggeriana.
Na base da mesma intuição, Charles Sanders Peirce, logo nos seus artigos da década de 1860, argumentou que o fundacionalismo epistemológico não só é impossível como, mesmo que o não fosse, seria desnecessário. Mais, “a minha experiência primária”, contra as palavras de Rovelli (p. 158, itálico meu), segundo esse notável polímata e filósofo americano não será “ver o mundo à minha volta”. Pois “ver” – metáfora de qualquer conhecimento teorético como o cartesiano – constituirá, afinal, um subproduto de agir. Fica a nota de que porventura a ação prática é que constituirá a dita “experiência primária”.
Ao fechar as capas duras, macias, desta grata edição da Objectiva, elevam-se-me no horizonte as questões da estrutura segundo a qual ocorrerão as focagens/desfocagens que gerarão o tempo que experimentamos, e do tipo de causalidade que precisamente espoletará essa geração. E levo a hipótese de que a articulação entre o tempo físico, cronológico, e o tempo psicológico, íntimo, poderá ser pensada mais frutuosamente na pista peirceana, interessada nas ações de resolução de problemas que se impõem, ou de que cuidamos, nas circunstâncias em que nos vamos encontrando.
Mas, por agora, é mais do que tempo de me desviar para
a berma, e deixar a leitora com a possibilidade de voltar a esta questão básica
num seu certamente mais frutuoso encontro direto com Carlo Rovelli.
In Etc. e Tal – Jornal, 01/09/2020 (revisto)