Transhumanismo – O desafio de Tolentino de Mendonça e as condições da tecnificação

No seu sermão após a procissão do Campo nas últimas festas do Senhor Santo Cristo, o Cardeal D. Tolentino de Mendonça apontou o desafio epocal do transhumanismo. Já aqui vamos atrasados nesta referência, mas cada atraso com que abordemos esse tema só no-lo torna mais atual.

O transhumanismo é um movimento gerado a meados do século passado, que propõe a superação de limitações do corpo humano mediante dispositivos tecnológicos. Entretanto, o desenvolvimento das nanotecnologias, das ciências cognitivas, em particular a IA, e das técnicas de edição genética, multiplicaram e precipitaram as possibilidades de tais intervenções.

Face a essas possibilidades, Tolentino de Mendonça partilhou a noção de individualidade humana implicada no transhumanismo: não como duração de algum núcleo essencial, mas como processo de possível desenvolvimento e realização. Em conformidade ao atual conceito de inacabamento biológico do Homo Sapiens, às análises existenciais de Heidegger e Sartre etc.

No entanto, o Cardeal português divergiu da conceção transhumanista das nossas condições biológicas e daquelas tecnologias como meros elementos de um campo de combinações e produções a explorar. Tendo antes proposto, na tradição aristotélica, uma formulação do ser humano inspirada na definição por Miguel Ângelo da arte escultórica: cada indivíduo humano deve ser um “parto” pelo qual a obra se liberte da pedra tosca que a encobre.

Os receios da aposta transhumanista são tão velhos e conhecidos quanto o Frankenstein de Mary Shelley. Em troca, o problema do postulado de Tolentino de Mendonça de uma forma prévia sob a rocha bruta, forma que orientaria e mobilizaria o trabalho de esculpir esta última, é o da justificação desse postulado e o do reconhecimento de uma tal forma humana.

Perplexos entre esses modos de nos concebermos como “humanos” numa civilização tecnológica, convirá começar por reconhecer como, nesta civilização, se estão a transformar as condições dessa conceção. Para isso, deixo apontadas quatro transformações em curso segundo Gernot Böhme (Invasive Technification, 2012):

A tecnificação da vida está a incrementar uma divergência entre ações orientadas, instrumentalmente racionais – p. ex. de reprodução, de nutrição, de transporte… – e ações de prossecução espontânea da vida natural – p. ex. de relacionamento sexual, de alimentação, de movimento… Desvinculando as segundas da orientação prática que partilhavam com as primeiras.

À medida em que o corpo humano se torna menos relevante na produção, o corpo surge como um meio de novos prazeres sensoriais. Assim como a remissão de operações mentais repetitivas e práticas para máquinas faculta a exploração de outras formas de consciência. A tecnificação tem sido assim acompanhada pela integração no dia-a-dia de inúmeras práticas exotéricas de meditação etc.

O desenvolvimento de um mundo de imagens com regras próprias – dos jogos virtuais ao metaverso – desvincula a nossa imaginação do mundo em que nos encontramos corporalmente. Empobrecendo a experiência física direta em nome da segurança etc., e multiplicando formas virtuais de satisfação alternativas às corpóreas.

O desenvolvimento de sistemas de monitorização dos comportamentos está a dispensar os indivíduos da internalização de valores morais e códigos de conduta, dissolvendo-se assim o autocontrolo e quaisquer éticas deontológicas.


Correio dos Açores, 03/07/2022

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