EFE / I. Ortega |
De um lado, temos acordos comerciais e
financeiros que, a troco de mais um confortozinho nas sociedades ocidentais
cujas economias mal cresciam, as vieram deixando reféns das oligarquias russa
ou chinesa. Temos precisamente as estratégias expansionistas destes últimos países,
progressivamente implementadas no fornecimento de gás ou na construção da Nova
Rota da Seda. E teríamos a generalidade dos ucranianos, tivessem eles vergado face aos blindados e helicópteros russos, para salvar coisas como mais um
jantarinho no tabuleiro assistindo a qualquer telenovela ou concurso televisivo.
Do outro lado, no entanto, temos a
resistência que cada ucraniano está a implementar juntamente com os seus
próximos e as instituições do país. Começaram-na e mantêm-na a despeito das
recordações, que seguramente têm, da Crimeia, da Geórgia e da Chechénia, ou até de Praga e
de Budapeste.
Desde há cerca de um século que diversos autores têm associado escolhas práticas como aquelas primeiras a uma racionalidade técnica, mais até, a um modo técnico de ser. Mas essa associação, julgo, queda-se por uma compreensão
pobre do que será nuclear nessa racionalidade. A incompreensão do que John
Dewey chamou “instrumentalismo”.
A racionalidade técnica determina o que fazer para o cumprimento de um
objetivo. Aparentemente, supõe-se assim um fim ou meta para além dos meios que
se dispõem em função dele. Pelo que, se o fim for anulado, tudo aquém deste restará
destituído de sentido – i.e. se o que está dado não for um “meio-para…”, não terá
identidade nem valor. Assim, a possibilidade de uma vitória russa destituiria de
sentido a morte de cada vítima ucraniana, a destruição de cada casa de Kiev ou de Kharkiv.
Dewey, porém, apontou que radicalmente o objetivo da ação é sempre
completar alguma situação que se constitui em défice. Défice de alimentos, ou
de calor… Mas também de evidência do que seja propriamente o homem, e de
estruturas de formulação e de comunicação tanto disto como daqueles processos
de produção de alimentos etc. Produzem-se, então, “instrumentos” para o
completamento de tais situações. Instrumentos como alfaias agrícolas,
aquecedores… mas também como as definições do que é uma planta, uma máquina, do
que é o homem que cultiva umas ou desenha e produz as outras, como a linguagem
por meio da qual se concebe tudo isto.
Mais, este filósofo americano salientou que, logo no reconhecimento do que
falta numa situação dada, se projeta o fim a alcançar. Tal como o cumprimento
deste implica e é condicionado pelos meios utilizados. Fins e meios imbricam-se
mutuamente.
Se bem interpreto o autor referido, cuja leitura crítica aqui fica sugerida
(Later Works, 1925-1953), a resistência de cada ucraniano é então o meio para essa pessoa alcançar a respetiva autonomia e a facultar aos seus pares. Isto é, de,
enquanto vivos, não se reduzirem a instrumentos (quais alfaias agrícolas…) de outros
homens que se conceberam a si próprios como legítimos invasores dos anteriores.
Mas de se constituírem antes, aqueles primeiros homens, como geradores do que
completasse as situações deficitárias em que se encontrassem. E esta
generatividade instrumental é o que distingue o modo humano de ser.
Ultrapassarei a dimensão normal desta coluna para apontar ainda: a procura
de um fim concreto e ulterior a alguns dados concretos, que se tomam como meios
para alcançar o anterior – p. ex. usar um copo como meio para levar água à boca
e matar a sede – é o exercício quotidiano da racionalidade técnica. No qual, ingenuamente,
se pressupõem os restantes elementos do contexto onde se distinguem os fins e
meios como se aqueles primeiros não fossem também instrumentos concetuais, mas
antes naturezas ou essências em si mesmas. Todavia, mesmo nesse nível ingénuo e
derivado da racionalidade técnica, não se resolve adequadamente um problema
criando outro maior em seguida. Como parece ser o caso de quem, em vista de
mais um confortozinho imediato, hipoteca a sua segurança – portanto, todos os
confortos – na década seguinte.
A racionalidade técnica dos políticos e seus eleitores que, pelo Ocidente,
têm assinado os mencionados acordos – e mais tantas outras decisões
equivalentes – não se afigura, pois, apenas ingénua e derivada. É também
defeituosa. De modo que ou se corrige, ou o fim projetado é lamentável.
para: Correio dos Açores, 06/03/2022