Em 1959, C.P. Snow proferiu a conferência “The two cultures”, em que distinguiu a cultura das ciências e a cultura das Humanidades. E desconsiderou a segunda pela sua falta de rigor e pela sua irrelevância para o melhoramento das condições de vida das populações. A avaliação social dos cursos “de ciências” e “de letras” revela bem como essa continua a ser a disposição comum.
Exatamente meio século depois, Jerome Kagan retomou a questão da ponderação de diferentes culturas disciplinares em The Three Cultures – Natural Sciences, Social Sciences and the Humanities in the 21st. Century. Mas apontou as respetivas assunções seminais, vocabulários e contributos. Para argumentar que nenhuma esgota a experiência humana do mundo e de nós próprios. As três culturas – ou quatro, se descolarmos as artes das Humanidades – devem, pois, ser consideradas e até articuladas.
J. Kagan, The Three Cultures |
Abordamos aqui apenas a primeira – aquela que consolidou a distinção
da cultura de matriz europeia no mundo. Uma Capital Europeia da Cultura, a que Ponta Delgada se candidata, me parece que deverá sempre considerá-la.
Nessa cultura das ciências naturais, Kagan distingue três assunções
seminais: todos os fenómenos naturais resultam de processos materiais que podem
ser aproximadamente preditos; nenhuma proposição científica é definitivamente
verdadeira; e os fenómenos naturais são neutros em relação aos valores humanos.
Os seus vocábulos constituem-se como “azul”: simples correlato de
“comprimento de onda eletromagnética” com 440-485 nm. e do respetivo processo
de investigação. Completamente estranho às conotações que receberá no seio das Humanidades, como no poema
“Sinfonia de cor” de Armando Côrtes-Rodrigues.
Assim distintos são também os contributos de tais discursos.
Entretanto, como Kagan começou por reconhecer, nas ciências da Natureza pontua
hoje a chamada Big Science – aquela que depende da utilização de grandes
e dispendiosos equipamentos tecnológicos, com tratamento de dados por muitas
equipas cooperantes. O autor faz assim mal, penso, ao não retirar a ilação de
que a ciência contemporânea – e de resto já a moderna desde Galileu – é
tecnologia aplicada. Além de ser técnica aplicada, uma vez que os procedimentos
da experimentação controlada, da modelação, da generalização indutiva e, antes, já mesmo da observação natural rigorosa, constituem técnicas procedimentais para
a produção dos resultados visados.
Ou seja, a ciência tornou-se um ramo ou um momento da técnica e tecnologia.
Pelo que a cultura da primeira só se compreende no seio da cultura das segundas.
Diversos casos açorianos ou mesmo micaelenses oferecem matéria para essas
reflexões.
Por exemplo, Francisco Arruda Furtado. Tanto nas suas técnicas de
observação natural, quanto na sua redução de um carater micaelense a uma
seleção natural. Ao que se associará a pista afinal de uma conformação dos valores morais e políticos a essa seleção, como tentaram alguns autores darwinianos.
Ou os casos de Afonso Chaves e de Montalverne de Sequeira, de quem nestas
páginas (já há uns anos) sugeri uma leitura interessada nas duas tendências que
divergem na assunção seminal de revisibilidade das “verdades” científicas –
respetivamente, o realismo e o construtivismo.
A Capital Europeia da Cultura será uma grande ocasião para cultivar essas reflexões
e colher os frutos consequentes.
adaptado de Correio dos Açores, janeiro 2022