Afinal, o que é a tecnologia? – O caso dos xenobotes

Faz amanhã um ano que, normalmente aos primeiros sábados de cada mês, sempre entre 495-500 palavras, aqui abordamos as intermediações da tecnologia entre o homem e o mundo. Fazendo um ponto da situação, esta será uma boa ocasião para abordar a questão básica que seria a primeira, mas que foi ficando adiada: afinal, o que é a tecnologia? O que é isso, desde as pedras lascadas do Homo Habilis até artefactos atuais como os xenobotes, que distingue a atividade dos espécimes do género “Homo”, ou seja, a forma humana de existir?

C. Mitcham
Um dos autores mais referidos nesta área, o historiador Carl Mitcham, registou quatro usos do termo “tecnologia”: como designação de i) objetos, coisas como máquinas ou mesmo sistemas físicos, mas artefactuais. Em relação às ii) atividades de design, produção e de utilização daqueles objetos. Designação de iii) conhecimento, em especial o “saber-como” fazer as coisas, (eventualmente) distinto do “saber o que” as coisas são. E, ainda neste âmbito antropológico, como expressão iv) de uma vontade ou disposição para a intervenção e construção, tomando-se a Natureza como recurso disponível para aquelas obras.

O primeiro uso desse termo será o mais comum na linguagem corrente. Mas, à entrada da indústria 4.0 – da automação com Inteligência Artificial às máquinas vivas referidas adiante – o seu sentido está a tornar-se tão menos claro quanto mais urgente é a sua clarificação.

Até à indústria 3.0, distinguíamos razoavelmente instrumentos, ferramentas e “artefactos” (Randall Dipert). Os primeiros são quaisquer objetos disponíveis, que um agente reconhece servirem alguma função prática. É o caso de um pau que um macaco aproveite para enfiar num formigueiro e retirar formigas que deseja comer. As ferramentas são objetos produzidos intencionalmente para se cumprir determinadas funções técnicas. Enfim, os “artefactos” (nessa definição) são ferramentas intencionalmente desenhadas de modo que as respetivas funções sejam reconhecidas por agentes humanos normais.

Qualquer dignidade que se reconheça à Natureza só se aplicava a tudo o que, eventualmente, pode ser tomado como instrumento. Apenas (!) tínhamos de esclarecer o quê, como e em que situações podíamos tomar assim. "Artificiais", ou “nossos” em sentido possessivo pleno, só dizíamos das ferramentas e “artefactos”.

Esq.: modelo criado por algoritmo;
Dta.: organismo artificial
capaz de se mover
Mas considere-se o caso dos “xenobotes”, criados há pouco mais de um ano na universidade Tufts. Como robôs (de meio milímetro), desenhados e construídos para desempenharem funções como o transporte de medicamentos navegando pelo sistema circulatório humano, são “artefactos”, ou pelo menos ferramentas (máquinas). Todavia, o material que os compõe são células de sapo. À exceção do nascimento natural, e assim da função de reprodução, cumprem as restantes funções elementares dos seres vivos, incluindo a morte.

Os xenobotes devem então ser considerados, e tratados, como seres vivos, como seres artificiais… ou na intersecção destas duas classes?

Se a resposta tender para essa última “natureza artificial”, onde exatamente se traçarão as linhas divisórias acima mencionadas?

Desde estas questões até aqueles outros sentidos do termo “tecnologia”, na relação entre esta e a sociedade não faltarão desafios nesta coluna ou em outros tantos sítios. 


enviado para: Correio dos Açores, 05/06/2021

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