A Covid-19 e a sociedade do risco

Em tempo de balanço do ano Covid, reconheceremos que se estão a acelerar e intensificar dois processos que assim nos condicionarão em força na década que se inicia com o fim deste mês.

Por um lado, o extraordinário sucesso que a tecnologia se prepara para alcançar na compensação do surto do novo coronavírus, ao bater todos os records temporais de invenção e validação de vacinas. E de “invenção” mesmo se trata, uma vez que algumas dessas vacinas são compostas não pelo vírus enfraquecido, como tradicionalmente, mas apenas pelo seu ARN, numa vacina já não natural mas sintética. Ou seja, ela constitui propriamente um artefacto tecnológico, não é meramente o uso intencional de um objeto natural. A ser aplicada mediante uma campanha logística de dimensão planetária de produção de milhares de milhões de unidades de vacina, da sua armazenagem e transporte em condições artificiais, ministração, recolha e resolução das respetivas seringas.

Por outro lado, ainda no passado fim de semana manifestações violentas em diversas capitais europeias
sugeriram que essa resposta tecnológica não é sentida por muitos como uma compensação de uma catástrofe, que assim será travada muito antes de se comparar à Peste Negra ou sequer à Gripe Espanhola. Outrossim, o tratamento antecipado dessa catástrofe representará primeiramente um atentado às liberdades individuais. Quando não mesmo se acredita que o anúncio desta pandemia resultará de uma conspiração transnacional de elites políticas, tecnocientíficas e financeiras contra a liberdade das pessoas comuns.

Quer este enjeitamento popular da comunicação institucional – política ou mesmo académica – quer o sucesso tecnocientífico antes referido, participam das duas faces do que Ulrich Beck formulou como uma “Risk Society” (alem. 1986, trad. ingl. 1992).

Designadamente, uma sociedade que se carateriza por crescentemente se ocupar no debate, prevenção e gestão de riscos que ela própria entretanto gera – como a velocidade e extensão do contágio deste coronavírus, mercê das atuais tecnologias de transporte e da liberdade de locomoção, gerido depois mediante as referidas invenção tecnocientífica e campanha logística.

Crucial nesse conceito é a diferença entre “riscos” e “catástrofes”. Os primeiros são as antecipações ou expetativas das segundas. Mas cada uma dessas antecipações, na respetiva realidade, não se reduz ao mero produto (resultado da multiplicação) da probabilidade de um acontecimento pelo valor conferido à gravidade deste – como se pretende no cálculo abstrato de riscos. Em cada caso real, a antecipação de qualquer risco implica ainda as regras, organizações e capacidades legais, científicas e culturais de identificação e tratamento da catástrofe aí expectada. Cada risco, portanto, é um fenómeno socialmente construído.

Como qualquer resultante do jogo social, a sua formulação e a ação consequentemente sugerida serão conforme aos interesses dos grupos sociais com maior poder nesse jogo. É a perceção deste enviesamento que cria o que o referido sociólogo alemão chamou “individualização trágica”: na suspeita de quaisquer instituições, peritos ou discursos racionalizantes, as pessoas comuns restam entregues a si próprias nas suas estimativas de quaisquer riscos. Daqui às mencionadas manifestações vai um passo.

É nestas sociedades que temos de aprender a viver funcionalmente. 


in: Correio dos Açores, 05/12/2020

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