Na madrugada (hora açoriana) de 28 para 29 do último mês de agosto, Elon
Musk apresentou via youtube o andamento na Neuralink da produção da
tecnologia que, ao mediar a nossa relação com o mundo, mais se fundirá
connosco. E ilustrou a mais ingénua e perigosa atitude que podemos ter hoje
perante estas novas tecnologias.
Concretamente, Musk apresentou um porco com um implante no cérebro em
comunicação com um computador, comparando-se o seu comportamento com os de
porcos sem implantes.
O dispositivo enviava para o computador informação sobre variações
elétricas no cérebro. No caso, a ativação de certas secções cerebrais perante
comida. Tal como poderia comunicar variações em situação sexual etc. – ou estritamente no
caso humano, de trabalho, política… O que permite construir padrões cerebrais
associados aos comportamentos entretanto observados, e depois inferir os
comportamentos mais prováveis de cada animal (humano) uma vez que o computador
indicie um certo padrão no respetivo cérebro.
No sentido inverso, o operador humano, ou o algoritmo que controlava o
computador, pôde excitar certas secções do cérebro do porco – mediante pequenas descargas
elétricas nessas zonas. Ora, como Musk muito bem começou por lembrar, temos razões
para supor que a cada vivência mental (cognitiva, emocional ou motivacional)
corresponderá um certo circuito eletroquímico cerebral. Portanto podemos esperar
que, se soubermos que circuito excitar nas pessoas com implantes, poderemos estimular
nelas, por exemplo, ódio aos nossos adversários etc.
Nestas relações de “fusão” (Peter-Paul Verbeek), a mediação que a tecnologia
exerce entre o homem e o mundo determina eminentemente o primeiro destes polos –
embora o mundo, enquanto percebido e objeto de emoções, se apresente também
alterado. É a tendência inversa dessa mediação nas relações de “imersão” das
tecnologias, que alguma vez abordaremos aqui, ou mesmo da relação de
“contextualização” que já exemplificámos em “Pandemias e contextos tecnológicos”.
Neste caso de fusão, o homem constitui-se como uma mente já não tanto
imbrincada num corpo, mas antes ligada a uma rede informacional. E o mundo
vivido ou experimentado constitui-se como o conjunto das vivências mentais
geradas nessa rede, mas também das consequências das intervenções físicas do homem num
conjunto de objetos que continuarão a existir além das projeções virtuais nessa
rede.
O que importa perceber é que qualquer mediação tecnológica altera os dois
polos dessa relação. Ou seja, a relevância da tecnologia para o homem e para o
mundo é muito mais íntima do que apenas os efeitos dela em alguns aspetos
físicos dos corpos ou da Natureza, ou mesmo a aquisição de alguns hábitos comportamentais.
Daí ser ingénua a posição de Musk na sua alocução final. Nomeadamente, quando
apelou à participação de engenheiros de eletrónica etc., mesmo que nada saibam
sobre o cérebro à exceção de que constitui um conjunto de sistemas
eletroquímicos. Sem que a Neuralink (além da declaração vaga de que respeitará
algum quadro deontológico) se proponha atender a qualquer enquadramento no
horizonte da reflexão crítica sobre a complexidade da relação
homem-tecnologia-mundo.
Quanto aos perigos dessa posição, ficam à estimativa e cuidado de cada
um de nós.
in (com o título errado) Correio dos Açores, 07/11/2020